sábado, 7 de julho de 2012

Da janela

  Eu a vejo todos os dias, ou quase todos. Ela mora na minha rua, não sei o seu nome, nunca ouvi sua voz, mas a sua imagem na janela detém minha atenção, por alguns segundos, toda vez que desço a rua. É raro não vê-la, se não a vejo quando estou saindo, a vejo quando eu estou chegando. Sempre lá, morena clara, pálida, amarelada, olhos tristes e um semi-sorriso, que incomoda (porque não disfarça a tristeza e ainda "represa" alguma dor). Sua casa é movimentadíssima, avós, pais e irmãos, todos muito ocupados, todos cheios de vitalidade, só a moça parece perecer, cada dia mais clara, mais magra, menos feliz. As vozes são altas, as conversas públicas, porque acontecem da rua para a casa ou da casa para a rua (alguém do lado de dentro discute com alguém que está saindo da casa ou com alguém que ainda não chegou.), só a moça parece não ter voz.

  Os pais saem para o trabalho, o avô para praça, a avó para a igreja, os irmãos pra a escola e a moça? A moça permanece. A moça na janela; a moça da janela. A vizinha, antiga moradora, disse que a moça tivera anos atrás uma rotina tão atribulada quanto a dos outros moradores da casa da esquina, a moça trabalhava, fazia faculdade, nos finais de semana voltava de madrugada; até o dia em que ninguém nunca mais a viu sair. Por meses ninguém da rua viu a moça,  só comentários: uma doença, uma viagem, intercâmbio para o exterior, gravidez, fuga, acidente. Finalmente, a moça reapareceu na janela. A moça permaneceu na janela. E é lá que eu a vejo todos os dias. Desde que a conheci, ela já era uma "moça de janela". 

  Descendo a rua, tentando não pensar em nada, só descer, andar e chegar. O meu destino hoje é claro, é objetivo: tentar mais uma vez; penso na humildade que tal tentativa exige, no tamanho do desprendimento, penso que não tenho nenhum dos dois; mas tenho o objetivo. O tal objetivo. Enquanto isso, meus olhos correm pela rua, chegam até a casa bonita da esquina, a moça da janela  está lá. Tinha vinte anos, agora já tem quase trinta e quanto tempo de janela tem a moça? Como consegue permanecer, enquanto todos passam? Qual é o tempo da moça? Qual será o relógio da moça? Existe nela alguma preocupação, ansiedade ou angústia? De onde consigo enxergar só vejo melancolia, nenhuma urgência...

  Desço a rua, sou mais uma que passa na janela da moça, sou mais uma que segue na tentativa de "ganhar o mundo". Alegria é contagiante? Tristeza também. Ver uns olhos mortos, sem brilho algum, faz a gente pensar sobre o que vale a pena, porque que a gente também não desmorona, de que somos feitos. Queria poder fazer algo por ela, sinto mesmo que as nossas vidas são interligadas (a minha, a dela, a de todo mundo). 

  Esqueço um pouco da moça, da janela, dos "kharmas" individuais e sigo no meu intento. Sorrio por fora, enceno uma humildade, disfarço o desespero e, mais um vez, não ganho coisa alguma. O tempo rápido, implacável, definitivo segue o seu curso. Para mim, para a moça da janela, para todos nós. Penso em avisá-la, em advertí-la, quem sabe convencê-la de vir aqui para fora? Para quê? Por quê? 

  Penso se há, realmente, alguma diferença importante entre a moça e eu. Ela na janela, eu na rua. O tempo passa para ela e para mim. Ela não "ganhou o mundo", nem eu. Eu sei de tudo isto e ela? Talvez saiba, talvez não. Penso que talvez a minha janela só pareça maior do que a dela, que o meu exercício de ocupação, só me afaste um pouco da constatação dura que é o de permanecer, enquanto tudo passa.

"O tempo passou na janela e só Carolina não viu..."





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