segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Por muito pouco a gente volta a pulsar

  Ela abre tranquilamente a porta do quarto, deseja-me uma "boa noite", antes de sair pergunta se vou comer algo, se oferece para preparar o que eu quiser. A oferta é muito doce, sempre é; seu afeto sempre foi materializado assim: através de um casaco (colocado sorrateiramente na minha bolsa), um guarda-chuva, um prato quente de alguma de suas especialidades culinárias. Ela é onipresente, nunca me faltou, está em todos os lados (dentro e fora, frente e verso, direito, esquerdo e nos meios), até quando meu desejo é afastá-la (para dar asas ao nosso sentimento) ela permanece de plantão, sempre na expectativa de me socorrer nas quedas; somos diametralmente opostas, retas transversas, mas que sempre se encontram em algum ponto (não sei como isso acontece). Sua dedicação é tanta que, às vezes, incomoda; incomoda pensar o quanto somos dependentes uma da outra; quando eu adoeço, ela se esforça tanto em me curar, que depois de me colocar de pé novamente, ela é quem cai enferma. Foi ela quem segurou minha mão nas piores dores e desejou para si cada uma delas (não se esquece lealdade assim em tempo algum desta vida), é ela quem ainda hoje vela meu sono, afaga minha alma e usa as piores palavras (eis um dos seus poucos defeitos!) para dizer aquilo que eu não quero ouvir. Mas, perdoa cada uma das minhas piores falas, resultado de raiva, vingança ou puro despeito. O que ela tem de desacerto nos diálogos, ela compensa nos temperos, nos gostos, aromas e sabores que desde a infância me ensinou a experimentar. Devo a ela também meu paladar explorador (nunca recuso-me a provar nenhuma iguaria) e bastante saudável (aprecio demasiadamente frutas, verduras e legumes).

  Ela é uma cozinheira talentosíssima, mas suas virtudes culinárias não são como os de uma profissional, são mesmo aquelas maternais: comida caseira, quentinha, saudável, produzida e ofertada, sob o manto inconfundível do afeto mais genuíno. Por causa dela, come-se até quando falta-nos o apetite; porque é através dos seus pratos que ela se aproxima, invade e preenche nosso corpo (e depois alma), substituindo o que antes era só uma ausência. É na cozinha que ela fabrica suas alquimias de bruxa boa, de feiticeira do bem, ela traz o prato, e por algumas horas os problemas se dissipam, as complicações se dissolvem.  Com o paladar acostumado, a alma treinada, gosto absolutamente de todas as refeições que ela produz, mas há uma, em especial, capaz das melhores lembranças.

  Antes de sair do quarto, ela insiste em cozinhar para mim. Peço que não se preocupe, mas ela obstinada, parada na porta, relutante mais uma vez sugere fazer "qualquer coisa". Não tenho fome, mas tenho ausência, vazio, falta; e ela sabe. Dentre tantas possibilidades peço o que sempre mata minha fome subjetiva, escolho a melhor "pipoca do mundo". Foi a minha primeira experiência na cozinha, mas quando ela se oferece para fazer eu quase nunca recuso. Era isto que eu pedia quando ficava doente ou triste na infância. Minutos depois ela volta  e amorosa entrega-me meu quitute favorito, dá-me um beijo de boa noite e a vida, tal qual um sapato apertado, que fere os calcanhares, que me fazia angustiada e triste, volta a pulsar confortável, afetuosa e feliz.

  A situação não mudou às custas de uma bacia de pipocas, mas o mundo que ameaçava desabar, é de repente suspenso pelo alimento infantil, lúdico, branco, fofo, flocos de neve quentinhos e salgados. Mais uma vez minha mãe aplacou a queda, curou minhas feridas, segurou minha mão e preencheu a falta implacável que atinge-nos eventualmente. A cozinha, a mãe, as mãos, o afeto, o alimento saltitante eles modificaram o meu dia; é no pouco, por pouco que a gente se mantém de pé. E por mais essa lembrança é que eu vou amá-las sempre: a mãe e a pipoca.


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