segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Além da presença

  Foi o Caio* quem me apresentou a frase da Camilie Claudel, de uma carta para seu amante/algoz Rodin: "Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta". Nunca esqueci. Sabe o que é comprender tão bem uma frase, as palavras "caberem" tão bem em um sentimento seu? E por isso sempre a levei comigo. 

  Há alguns anos, tenho sido atormentada por uma "ausência anunciada". Por razões geográficas e outras tantas as quais sucumbimos, pouco convivo com os seres que mais esperei na vida. O fato de não vê-las, não compartilhar do seu crescimento, não dar-lhes minha demonstração de afeto diária, dói tanto quanto o fato de não construir uma história em comum com elas. E, até, quem sabe, um dia, ser só alguém comum, nada especial, para elas. Minha vaidade rejeita completamente essa possibilidade, ainda que, no fundo, eu saiba que ela seja muito plausível.

  No entanto, dia desses, enquanto assistia a uma cena da nova telenovela, sou surpreendida com a frase que materializava o que eu estava pensando: - Nossa, como essa atriz me lembra...
  O nome nem precisava ser dito, eu sabia a quem minha mãe se referia. A mulher lembrada, fez parte da minha infância, e nem foi de maneira muito ativa, pois pouco nos víamos. E saiu das nossas vidas quando eu tinha cerca de 8 anos, mesma idade de sua filha caçula. A tia de minha mãe, tinha a mesma idade dela e era sua melhor amiga, amizade que por vezes era reprovada, inclusive por meu pai, que mesmo liberal para seu tempo, tinha lá suas ressalvas quanto a aproximação da tia "tão livre" com a sua sobrinha, esposa dele. Ainda assim minha mãe jamais abriu mão da amizade cultivada desde o berço.

  A amiga de minha mãe tinha uma vivacidade impressionante. Era uma dessas mulheres cheias de energia: falante, risonha, inquieta. Tinha mil habilidades diferentes. Proibida pelo marido de trabalhar "fora", era cabelereira, maquiadora, manicure, cozinheira, costureira, bordadeira, atividades essas que exercia em casa mesmo, por amor e para colaborar com as despesas do lar. Eu adorava ir a sua casa, que era o oposto da minha: desorganizada, sempre muito frequentada, pelo clientes e amigos dos filhos dela (ela era mãe de cinco crianças) e abarrotada das novas máquinas que ela adquiria para um novo empreendimento. A mulher tinha uma figura quase hollywoodiana (em uma época que eu nem sabia o que era Hollywood): tinha uma tez muito branca, cabelos loiros, curtos à Marilyn Monroe, corpo magro, elegantíssimo e unhas e boca encarnadas. Era assim que eu a via, nas suas poucas visitas a minha casa. Já quando íamos a sua, encontrávamos um ser ainda alegre, mas um tanto fragilizada, contida, amedrontada e, geralmente, com as marcas indisfarçáveis dos abusos cometidos pelo marido. Era um outro clima, que eu muito pequena não compreendia. Mas, de tudo o que ela era ou aparentava ser, o que mais chamava minha atenção eram os seus olhos. Castanhos, grandes, redondos e vivíssimos, com o mesmo brilho da tal atriz de telenovela. São mais de duas décadas que esses olhos se fecharam tragicamente e eu ainda lembro-me perfeitamente deles. Recordo-me também do primeiro adjetivo desconhecido que foi atribuído a mim, quando muito menina. E ele veio a partir de uma comparação com essa figura tão éterea: minha filhinha é vaidosa como você. Vaidosa. Envaidecida pela comparação, mesmo sem ao menos conhecer a palavra, o fato desta aproximar-me dela bastou-me. 

  Convivemos pouco, não lembro sequer de uma palavra que ela tenha dito diretamente a mim. Só muito tempo depois da sua morte eu compreendi o que aquela tragédia toda significava. Uma família segregada, cinco crianças órfãs de pai e mãe, destinos precocemente selados, uma vida, que me parecia infinita, ceifada. Ainda assim, sinto-me muito próxima dela, sinto que a sua vida ainda pulsa em mim. Sou herdeira dela, de algo que eu nem sei o que é. Ela apareceu nos olhos da atriz, frequentemente vive no esmalte vermelho que passo de maneira ritualística, no batom, no blush, na coragem, traço tão feminino. Não houve presença, mas há tanta influência. 

  A vida segue com sua mágica cotidiana, gente que passa tão rapidamente em nossas vidas, mas que deixam marcas mais profundas do que poderíamos imaginar, outras tantas com quem convivemos diariamente, por anos, pouco nos toca ou modifica. Não há maneiras de descobrir que pessoa serei para as minhas amadas sobrinhas, mas a lembrança dessa amiga da minha mãe consolou-me, deu-me esperanças de um dia ser para elas alguém muito especial, como a amiga de minha mãe tornou-se para mim. Tomara! Coisa mesmo de uma vaidosa...


* Caio Fernando Abreu - Existe sempre alguma coisa ausente in Pequenas Epifanias.


Um comentário:

Ana disse...

infelizmente ás vezes a vida leva-nos grandes referências e antes do tempo... ficam as memórias. eu acredito que enquanto se lembrarem de nós não chegamos a desaparecer. O que tu fazes é lindo, é uma homenagem.
ebijos