sábado, 6 de outubro de 2012

De que é feita uma oração?

- Então faça seu pedido.
- Desculpa, mas eu não quero.
-Você precisa de uma intenção. Ela reage ao que parece-lhe improvável.
- A intenção é só esta: da oração mesmo. Não tenho pedidos. Ela responde natural, simples; resolvida que estava da atitude que considerava comum.

  A moça deixa-a perplexa, indignada. Ora, quem faz uma novena comprida dessas, articula tantas orações difíceis, dedica tempo, concentração e sentimento, sem ao menos fazer um "pedidozinho" em troca? Ela pensa. Depois da breve resistência da moça, ela faz  o anúncio: "que o meu coração repouse numa cama toda delicada de paz". A cara de reprovação é seguida de um muchucho. - Não adianta insistir. Pensa a senhora, daquela que parece-lhe tão desajeitada com a fé. - Não tem ordenamento, mesuras, nem sequer intenção...e mais essa! Mas não pode recusar seguir a novena, pensa que é um pecado mortal se negar a converter infiéis. Tentará, com a ajuda divina, catequizar a pobre, tão desorientada de rituais.

  Os encontros são sempre em horário marcado, embora a moça se atrase em alguns dias, peça para adiantar em outros, mas a mulher é implacável: - Todos os dias às 18 horas. Nem mais nem menos.
Nos dias que esquece o terço, o lenço ou o livreto, há sempre os reservas. - Sem os paramentos fica abominável, desrespeitoso demais. A moça distraída, perde-se sempre nas contas e sorrateira, pergunta baixinho: - Quantas Ave-Marias já se foram? Mais tarde, perde-se de novo e em um espreguiçar e bocejo costumeiro ganha a reprovação do grupo.

  É o nono dia, o último que o grupo se reunirá para a novena da moça. E é o dia de irem rezar na casa dela. Ela prepara um bolo, suco de goiaba e coloca no vaso, em frente à santa, as flores mais bonitas, escolhidas para a despedida da santíssima, veste-se com a roupa de missa, tem o lenço nos cabelos, o terço elegantemente posto nas mãozinhas ansiosas e o livreto na cadeira, guardando seu lugar de anfitriã. E desta vez, surpreendentemente, correu-se tudo muito bem. A moça acompanhou todas as rezas, muito atenta, sem sono ou chateação, tinha a ladainha de cor e tudo mais. A experiente senhora, orgulhosa do trabalho, ao fim da novena, propõe a aprendiz: - Gostaríamos que a mocinha anfitriã fizesse a oração que desejasse, e nela pusesse as intenções que ela considerasse mais urgentes.

  Tímida, envergonhada e muitíssimo surpresa a moça mal sabia por onde começar. Afinal, foram nove dias aprendendo os ritos, as rezas todas acompanhadas no livrinho. E pediam-na assim de improviso? Para não decepcionar e para que o embaraço não se tornasse maior, ela buscou fundo na alma a motivação para as rezas, as orações todas e a especail necessidade de "doutrinar" a sua fé, antes tão solta. E começou a oração, nascida no seu próprio coração:

  "Peço a senhorinha, que por favor, me aplaque alguns medos, mas não me tire todos eles, porque eles são a medida da minha fragilidade e eu preciso ter consciência dela, sabe? Peço que faça-me alegre, mas nunca ignorante sobre as tristezas alheias, quero também compartilhar as dores e sofrimentos que não partem de mim, mas que também são meus, isso faz de mim alguém mais solidária, eu acho. Peço que eu tenha tolerância com as atitudes dos outros que me enfurecem, magoam ou contrariam, afinal não podemos ter todos dispostos as nossas vontades e expectativas. E que eu também tenha-a comigo, não me julgue, castigue ou crucifique por ser falível, ignorante e tão humana. Peço mais poesia no meu dia: riso de criança, brincadeira com cachorros de rua, sorvete em tarde quente. Peço solidão, quando eu precisar somente de mim, mesmo que eu não saiba dessa necessidade, um ombro amigo, quando eu solitária não suportar carregar a minha dor. Peço que o meu coração seja grande, forte e generoso, que saiba sempre se colar, quando, por um acaso, ficar em pedacinhos. Peço que se me faltarem dinheiro, palavras, fé e amigos, nunca me falte alma, porque esta sim é imprescindível. Que eu saiba apreciar uma tarde chuvosa e um sol do meio-dia escaldante, que eu não reclame muito, nem de tempo, companhia ou fase. Que eu compreenda sempre sobre a transitoriedade da vida. Que eu duvide, mas não muito, que eu acredite, mas não cegamente. Que eu seja santa ou louca, mas jamais desumana e impiedosa. Que esta oração, que a Senhora já conheceste, porque esta aqui dentro desde sempre, nunca me falte, em tempo algum, porque se me esquecer dela já não serei mais eu."

  Emocionadas, uma a uma das senhoras cumprimentaram a moça pela belíssima oração, a outra senhora, de longe, continuou contrariada. Mal bebeu o suco e do bolo só um naco ela levou à boca. Achou a oração subjetiva demais, ampla demais, na sua fé a clareza era muito importante, pois temia confundir os santos com tanta informação. Depois da novena coletiva, a moça preferiu seguir com as suas desordenadas e individuais rezas. Nunca arrependeu-se da decisão. Aliviada, a senhora seguiu procurando moças mais disciplinadas a catequizar.

  A fé é mesmo algo muito individual, para alguns há de se ter métodos, para outros coração. Seja qual for a escolha de cada um parece-me que só não vive-se bem sem fé alguma. Fica mais difícil a vida assim...


Um comentário:

Ana disse...

texto lindo;) tem razão, a vida sem fé deve ser bastante dificil... quanto a rezar, eu rezo muito, não sei a quem especificamente, mas rezo. do jeito que o mundo está quem não tem fé não deve aguentar a existência, eu não aguentaria.
beijo