segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Deixe-se ser atropelado. Não dói.

  São duas pessoas distintas, com idades, famílias, cidades, estados e experiências diversas, mas eu as conheci e percebo o que as aproxima. Pela primeira tenho um afeto inato, é linda, metida, esperta e adora sorrir, para os outros, dos outros; é menina ainda. Com a segunda tive um contato superficial, tem um olhar perdido, pareceu-me confusa, chegou com uma abordagem nada tímida e trazia um bolo nas mãos, bastou-me pouco, muito pouco, alguns rápidos minutos, para vê-las sob uma mesma perspectiva.

  A menina é adorável e muito afetuosa, pega o telefone das mãos da mãe e se põe a cumprimentar o avô pela idade recém completada. As bochechinhas alvas e rechonchudas enconstam no telefone, as unhas pintadas de rosa, se destacam nas mãozinhas ágeis, não vejo palavras, embora ela diga muitas, só amorosidade. Mas, ela havia preparado um discurso, entre tantas doçuras ela solta a frase "Vô, um feliz aniversário, sei que o senhor não vai viver muito e...", de repente a declaração é interrompida, a mãe percebe a gafe infantil e alerta a filha. Envergonhada ela desliga o telefone, em minutos, liga novamente e desculpa-se com o avô pela confusão, o avô é só sorrisos e perdão. "Não se preocupe, minha filha, o vovô entendeu o que você quis dizer.". Achei a declaração de aniversário mais bonita de todo o mundo. Desejei muito que um dia eu tivesse uma igual.

  A outra é uma mulher com cerca de 40 anos, mas tem a mesma agilidade e inquietação da menina. Chega ao encontro da turma com quase duas horas de atraso, desce o gramado apressada, tentando não perder mais nada. Já levantávamos todos, para irmos embora, quando a vimos. Ela traz nas mãos um bolo de chocolate (seria mesmo de chocolate? Pareceu-me claro demais), estava solado, daqueles que a gente se envergonha ou se enfurece quando o retiramos do forno. Eu esconderia. Ela corajosa, colocou-o em uma bonita embalagem trasparente, exibindo sua obra culinária. Lamentou ter perdido a reunião, ofereceu o bolo, insistiu. Insistiu de tal modo que quase aceitei um pedaço, mas a professora sugeriu que ela levasse o bolo para os filhos. Chovia, todos já alimentados, agradecemos e recusamos o tal bolo. Despedimos da mulher, tomamos cada um o próprio rumo. Mas, segui culpada pela decepção causada. Suspeito que ela não lamentava-se apenas por ter perdido a aula, acho que doeu o seu bolo ser recusado. Só quem possui uma relação de afetividade com a culinária saberia o que é isso. Não oferecemos apenas bolos, tortas ou biscoitos, ofertamos amizade, consolo e afeto. Quem recusaria isto? Nós; todos nós recusamos, invariavelmente, o que deveria ser irrecusável.

  A menina confundiu-se com as palavras, típico da imaturidade infantil. Mas o que ela desejava mesmo era dizer ao avô que a vida era curta demais diante de tudo que ela desejava para ele. O que a gente deseja para quem ama, senão a eternidade? No mínimo, mais vida. Eu também lamentei a vida, aparentemente, curta do avô. Desejaria a ele mais e mais tempo. Mas não disse porque sou crescida. Bobagem, às vezes, ser adulta. Quanto a mulher, que depois descobri colecionar uma sucessão de desastres  culinários, com receitas bizarras, quitutes deformados e pouco saborosos, desconfio que a sua insistência, na verdade, é em oferecer e receber amor. A verdade é que todos nós, em alguma medida desejamos ser amados e ela, muito embora tenha lá suas peculiaridades (sequelas de um acidente de carro na época de faculdade), sob esse aspecto não se difere em nada de nós. Soubesse eu o que tinha por trás do bolo feio e atrasado teria eu comido e repetido, não por pena porque acho que nunca devemos ser motivados por este tipo de sentimento. Mas, por retribuição e solidariedade, não se recusa afeto algum; não se diz "não, muito obrigada. Estou satisfeita." quando a oferta é amor.

  Há pessoas cujo afeto, gera algum medo. Seja pela sinceridade, disponibilidade ou aparente descontrole. Gente e sentimento que parecem caminhão desgovernado, com palavras mal calculadas, abraços efusivos, excesso de comida e atenção. Mas insanidade maior é a de quem não se enternece com a doação, quem foge do caminhão para o acostamento, por proteção. A menina e a mulher correm atordoadas pela estrada, até atropelam, mas não ferem, não matam, só assustam, de início. Não há o que temer, estradas muito tranquilas e ordenadas são mais prejudiciais, do que as confusas e movimentadas. Afeto muito racionalizado não parece afeto de fato.


Um comentário:

Ana disse...

gostei muito, como sempre;)
beijos