sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Um minuto do seu tempo

  "Um minutinho do seu tempo, senhora", foi assim que ela me abordou, eu tentava sair do prédio, claustrofóbico, quente, impessoal, mas ela pediu-me um minuto e eu não consegui recusar. Suada, cansada, uma gripe ameaçando a se instalar, dores musculares do ioga intenso (do dia anterior) e dei-lhe meu minuto, que não é nada precioso, mas sempre guardo-o; para quê, para quem eu não sei, mas mantenho-o tal qual como tesouro no cofre, não o dispenso a desconhecidos. Admito que parei, que dei-lhe a oportunidade de uma resposta porque era mulher (menina quase), tinha "boa aparência" e não parecia ser minimamente ameaçadora. Logo vi que não pediria dinheiro para o trote da faculdade, porque não estava suja de tinta ou  rasgada, não pediria nenhuma informação, porque a abordagem pedia meu "tempo" e quem está perdido tem pressa e "um minuto" parece muito, talvez tentasse me vender algo, alguma ideia, uma conversão, depois de uma análise superficial, suspeito que a última suposição estava acertada. A moça ainda tentou me ludibriar, não começou "gastando" seu minuto com a palavra religião, foi além, muito mais ousada, disse que em retribuição a minha atenção "mudaria" a minha vida. Sim, ela disse com todas as letras, "a senhora deu-me sua atenção e o que eu vou dizer agora mudará a sua vida." Eu nunca tinha ouvido nada parecido, tão instigante, tão improvável, tão explícito.

  A moça de no máximo 17 anos, cabelos compridos lisos, soltos, morena, sorridente, de vestido florido, às duas da tarde de uma sexta-feira quente, sol à pino, dentro do prédio mais feio e cheio da cidade, desafiava toda a minha racionalidade, propondo mudar a minha vida. A minha! Ela que não me conhece, não sabia sequer o meu nome, mas era enfática na sua ousadia. Eu não deveria acreditar, deveria? Tantos outros que eu conheci bem mais, esperei bem mais, mesmo sabendo ser ignorância e escravidão oferecer ao outro os rumos da própria existência, não quiseram, não puderam, não se dispuseram. E ela chega e oferece-me a tal mudança? 

  O discurso era um misto de pregação e depoimento, da pregação eu confesso que quase nada absorvia, vez ou outra, pensava em contrariá-la, mas achei que só desperdiçaria tempo, as minhas ressalvas ela já deveria ter ouvido pela boca de tantos outros; mas o depoimento, este sim era comovente, nem tanto pelo teor, porque já ouvi muita tristeza parecida, mas o tom, a postura e as emoções tão expostas, eram mesmo admiráveis.

  Enquanto ela falava sobre o seu encontro místico e depois dele a superação, transformação, o seu recomeço, eu a invejava. Invejava-a porque era pura paixão, dessas que se vê muito pouco e quando se tem a possibilidade de assistir, a vontade é aplaudir de pé, pedir bis e chorar. Paixão cuja força é capaz de salvar e também condenar alguém a uma vida de renúncias, dor e submissão. A pregadora era apaixonada, não por um homem, uma religião ou entidade, ela estava completamente entregue e refém da própria fé. Em nome dela, ela havia abordado uma desconhecida, pouco acolhedora, por ela corria os riscos de ser contrariada, julgada e interrompida. Enquanto ela dava-me lições de o quanto um sentimento, crença e filosofia, poderiam ser tão avassaladores, ela derramava algumas lágrimas. Em um corredor movimentado a moça chorava sem pudor algum. Ouvi os maiores impropérios dela, sem nem contestar um pouquinho, ouvi tudo, dei-lhe dez vezes mais do que pediu-me. Depois de dez minutos de pura excitação, ela perguntou-me se o que eu tinha ouvido, havia mudado a minha vida. Ansiosa pela resposta, pela primeira vez ela manteve-se calada. Hesitei por um segundo (muito menos do que eu acabara de doar) e respondi que sim. Logo completei com um "com certeza". Depois a moça ousada deu-me um panfleto com os horários e endereço da sua igreja e deixou-me no corredor, perturbada, muda, mudada. "E, eu nunca mais quero ser a mesma", pensei.

  Os apaixonados, os loucos, os exaltados são mesmo os que podem modificar uma vida, seja com um depoimento comovente ou uma só palavra acertada; um olhar aceso transformador ou mesmo um brilho discreto; através de gritos passionais ou silêncios apoiadores; quem sai, levanta a poeira e nos tira do assento ou aquele que permanece leal segurando nossa mão. Só os apaixonados são capazes de mudar o rumo de alguém apressado, cansado, pouco disponível às duas da tarde, isto em troca de um minuto de tempo. Nunca uma doação deu-me tanto.





2 comentários:

Ana disse...

São aqueles abanões emocionais que muitas vezes ns fazem falta sem o sabermos, e mudam muito, e ainda bem que há gente assim:)

Amanda Machado disse...

E, não são? Algumas vezes um desconhecido nos dá a percepção que necessitávamos...