"Um minutinho do seu tempo, senhora", foi assim que ela me abordou, eu tentava sair do prédio, claustrofóbico, quente, impessoal, mas ela pediu-me um minuto e eu não consegui recusar. Suada, cansada, uma gripe ameaçando a se instalar, dores musculares do ioga intenso (do dia anterior) e dei-lhe meu minuto, que não é nada precioso, mas sempre guardo-o; para quê, para quem eu não sei, mas mantenho-o tal qual como tesouro no cofre, não o dispenso a desconhecidos. Admito que parei, que dei-lhe a oportunidade de uma resposta porque era mulher (menina quase), tinha "boa aparência" e não parecia ser minimamente ameaçadora. Logo vi que não pediria dinheiro para o trote da faculdade, porque não estava suja de tinta ou rasgada, não pediria nenhuma informação, porque a abordagem pedia meu "tempo" e quem está perdido tem pressa e "um minuto" parece muito, talvez tentasse me vender algo, alguma ideia, uma conversão, depois de uma análise superficial, suspeito que a última suposição estava acertada. A moça ainda tentou me ludibriar, não começou "gastando" seu minuto com a palavra religião, foi além, muito mais ousada, disse que em retribuição a minha atenção "mudaria" a minha vida. Sim, ela disse com todas as letras, "a senhora deu-me sua atenção e o que eu vou dizer agora mudará a sua vida." Eu nunca tinha ouvido nada parecido, tão instigante, tão improvável, tão explícito.
A moça de no máximo 17 anos, cabelos compridos lisos, soltos, morena, sorridente, de vestido florido, às duas da tarde de uma sexta-feira quente, sol à pino, dentro do prédio mais feio e cheio da cidade, desafiava toda a minha racionalidade, propondo mudar a minha vida. A minha! Ela que não me conhece, não sabia sequer o meu nome, mas era enfática na sua ousadia. Eu não deveria acreditar, deveria? Tantos outros que eu conheci bem mais, esperei bem mais, mesmo sabendo ser ignorância e escravidão oferecer ao outro os rumos da própria existência, não quiseram, não puderam, não se dispuseram. E ela chega e oferece-me a tal mudança?
O discurso era um misto de pregação e depoimento, da pregação eu confesso que quase nada absorvia, vez ou outra, pensava em contrariá-la, mas achei que só desperdiçaria tempo, as minhas ressalvas ela já deveria ter ouvido pela boca de tantos outros; mas o depoimento, este sim era comovente, nem tanto pelo teor, porque já ouvi muita tristeza parecida, mas o tom, a postura e as emoções tão expostas, eram mesmo admiráveis.
Enquanto ela falava sobre o seu encontro místico e depois dele a superação, transformação, o seu recomeço, eu a invejava. Invejava-a porque era pura paixão, dessas que se vê muito pouco e quando se tem a possibilidade de assistir, a vontade é aplaudir de pé, pedir bis e chorar. Paixão cuja força é capaz de salvar e também condenar alguém a uma vida de renúncias, dor e submissão. A pregadora era apaixonada, não por um homem, uma religião ou entidade, ela estava completamente entregue e refém da própria fé. Em nome dela, ela havia abordado uma desconhecida, pouco acolhedora, por ela corria os riscos de ser contrariada, julgada e interrompida. Enquanto ela dava-me lições de o quanto um sentimento, crença e filosofia, poderiam ser tão avassaladores, ela derramava algumas lágrimas. Em um corredor movimentado a moça chorava sem pudor algum. Ouvi os maiores impropérios dela, sem nem contestar um pouquinho, ouvi tudo, dei-lhe dez vezes mais do que pediu-me. Depois de dez minutos de pura excitação, ela perguntou-me se o que eu tinha ouvido, havia mudado a minha vida. Ansiosa pela resposta, pela primeira vez ela manteve-se calada. Hesitei por um segundo (muito menos do que eu acabara de doar) e respondi que sim. Logo completei com um "com certeza". Depois a moça ousada deu-me um panfleto com os horários e endereço da sua igreja e deixou-me no corredor, perturbada, muda, mudada. "E, eu nunca mais quero ser a mesma", pensei.
Os apaixonados, os loucos, os exaltados são mesmo os que podem modificar uma vida, seja com um depoimento comovente ou uma só palavra acertada; um olhar aceso transformador ou mesmo um brilho discreto; através de gritos passionais ou silêncios apoiadores; quem sai, levanta a poeira e nos tira do assento ou aquele que permanece leal segurando nossa mão. Só os apaixonados são capazes de mudar o rumo de alguém apressado, cansado, pouco disponível às duas da tarde, isto em troca de um minuto de tempo. Nunca uma doação deu-me tanto.
2 comentários:
São aqueles abanões emocionais que muitas vezes ns fazem falta sem o sabermos, e mudam muito, e ainda bem que há gente assim:)
E, não são? Algumas vezes um desconhecido nos dá a percepção que necessitávamos...
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