terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Do gostar

  O caso é que eu sempre tive uma maneira muito própria de identificar minhas empatias, por gente, bicho, planta ou coisa. E não importa a qual classe pertençam, busco sempre alguma "humanidade" em cada coisa. Humano mesmo, sempre me pareceu ser o torto, imperfeito, rasgado, defeituoso. Não busco qualidades em quem amo - ou desejo amar -  procuro sim conhecer os defeitos, porque são eles que determinarão o tempo e a intensidade com que o laço perdurará. As qualidades de uma pessoa falam menos de seu caráter que os defeitos, esses sim reveladores, porque há falhas em um ser humano, que quando descobertas, são capazes de fazerem desabar um elenco infinito de qualidades. Penso que as qualidades são os pequenos regalos de algo ou alguém, atitudes sutis que nos arrancam sorrisos, suspiros e admiração súbita; os defeitos falam sobre a real personalidade do ser, quando ele se mostra sem as regras sociais, os princípios religiosos ou os cuidados com a própria imagem. E disso são feitas as pessoas das minhas relações pessoais: cheias de qualidades, mas, por outro lado, com imperfeições que pouco abalam meu afeto por elas.

  E vivendo deste modo, vez ou outra, alguém se surpreende com a minha pouca empatia por alguma sumidade dessas, quase unânime, "Mas todo mundo gosta dele!" Todos menos eu. "Mas é tão simpático, generoso, disponível, engraçado..." Mas, não gosto, não gosto. Respeito, converso, trato bem, tomo um café, mas amigo não é, entende? Mas, um dia, essa percepção sofreu seu primeiro abalo. Recém saída da infância, entrando na tão sonhada adolescência, eu e minha melhor amiga, da época, conhecemos um pequeno grupo no colégio, de cinco ou seis meninas, nos aproximamos e passamos a dividir com elas nossos intervalos, combinávamos de irmos para escola juntas, saíamos dela também "em bando". Aos poucos, conhecíamos cada uma delas e separadas do grupo, conhecíamos a personalidade individual, sem a "proteção", que muitas vezes, essas pequenas sociedades possibilitam. A Ruiva era parte integrante do grupo, foi a última delas de quem aproximei-me individualmente, se não bastasse a "blindagem" do grupo, ainda havia um "aparato" de segurança e proteção oferecido pela família da Ruiva. Ela era a maior de todas nós, talvez nós duas tivéssemos a mesma altura até, mas a Ruiva era larga, de corpo sólido e, mais tarde descobriria que não só o corpo, mas também de valores muito sólidos. Era filha única, de pais já mais velhos e sofria de uma superproteção materna, com a qual eu quase me identificava, se minha mãe não tivesse outros dois filhos e uma atividade profissional muito intensa com as quais também dividia seu tempo, eu, possivelmente, também seria "afogada" nos mares de um amor materno insano. 

  A dificuldade em estabelecer maior intimidade com a Ruiva, o excesso de regras da sua casa, seus horários obedecidos com pontualidade, as lições de casa priorizadas, fizeram com que minha amiga desistisse da aproximação, bastava-lhe a amizade das outras quatro. A amiga também não gostava do tipo "perfeito" da Ruiva e eu, que nunca tivera muita empatia com os pouco defeituosos, surpreendentemente não conseguia afastar-me daquele ser perfeito. A Ruiva só tirava nota dez, estudava todos os dias depois das aulas, respondia às perguntas em sala de aula, não faltava às aulas, mantinha os cabelos (muito ruivos) e quase indomáveis, sempre meticulosamente presos, por elásticos cor de rosa, até suas sardas (dezenas delas) pareciam "organizadas" na face. A Ruiva nunca respondia de maneira mal educada a ninguém, mesmo quando insultada - muitos a tratavam de maneira reprovável - e ainda assim, ela era sempre cordial e muito sorridente, em um ano de convivência diária, nunca vi a Ruiva chorar, lamentar-se ou mesmo resmungar baixinho. Não sei se algum dia ela manifestou o desejo ou se eu mesma "inventei" um destino para ela, mas estava definido: a Ruiva, mais inteligente do que todas nós juntas, seria médica, porque tinha uma caligrafia vergonhosa, notas excelentes e talvez optasse por pediatria, porque tinha um tom de voz muito doce e um sorriso macio constante.  A Ruiva tinha tudo para ser alvo do meu desprezo, mas não foi. Suas qualidades infinitas não afastaram-me dela, mas sim a vida, o meu próprio rumo "defeituoso", que me segurou na mesma série e turno e levou-a para um outro patamar (superior ao meu). Vezenquando, eu bem via a Ruiva e as outras quatro meninas, mas só o sorriso da ruiva parecia-me verdadeiro e afetuoso. E eu nunca esqueci que um dia eu gostei muito de estar tão próxima da perfeição e que, um dia, a falta de defeitos não me incomodou.

  Cerca de 17 anos depois da última vez que nos vimos, reencontrei a Ruiva em um ônibus, com a mãe e o casal de filhos; e eu que nem sabia que a Ruiva era mãe. Receptiva, doce, mas quase irreconhecível, já que que a referência que tinha dela estava guardada na minha memória e lá ela era menina ainda. Conversamos pouco, só o tempo de cada uma descer em seu ponto, não trocamos telefones, fizemos perguntas mais superficiais, para evitar as possíveis gafes e seguimos. E eu ainda gostava da perfeição. Não esperava nunca mais revê-la, mas no sábado último, enquanto chegava a uma festa infantil, uma voz suave, um sorriso brilhante e um corpo sólido me recebia na entrada, eu estava no trabalho da Ruiva, coisa que nunca suspeitaria. Reconheci-a pela gentileza (cada vez mais rara neste mundo) e senti-me grata por um dia não ter me limitado aos meus padrões de amizade e tê-la deixado entrar no meu coração. Desta vez, tivemos mais tempo, conversamos mais, descobri que a Ruiva não tornou-se pediatra, nem ao menos médica ela é, o casal de filhos já tem quase uma década, são gêmeos, e quando ela falava deles dizia: O "meu" Fulano e a "minha" Fulana, nem esse excesso de afeto incomodou-me, em outra pessoa talvez, mas não na Ruiva, estava perdoada, já de antemão, por qualquer perfeição ou preciosismo.

  Descobri que para gostar de coisas, pessoas ou bichos não há um único parâmetro a seguir. Descobri que talvez o grande defeito da ruiva seja este de ser tão "perfeita", a maior maldade desta alma tão sólida é a de nos fazer sempre acreditar no seu afeto e daí não vemos saída senão retribuir. Nunca se sabe o tamanho da maldade que pode caber em um coração aparentemente tão delicado. O "gostar" é coisa de difícil explicação, a gente se prende a qualidades mínimas, por vezes inventadas por nós mesmos e desprezamos defeitos até então imperdoáveis. É  tão somente isto: gosto, porque gosto. Não gosto, porque não gosto. Na vida, para as melhores coisas não há explicação plausível, contente-se com a falta de teorias e siga "na prática", talvez este seja um bom conselho amigo.



2 comentários:

Ana disse...

Adorei este texto, concordo contigo,os defeitos das pessoas dizem muito mais sobre elas do que as qualidades.
Beijos

Carla Machado disse...

É interessante saber que não aceitamos defeitos de alguns e estes mesmos defeitos inaceitáveis são aceitos em outros....