
Levantar-me, ocupar-me da higiene pessoal, depois um pouco da nutrição saudável (meticulosamente planejada), ligo a TV, que não ouço, não vejo, mas ligo. Cumprimento todos da casa, sorrio, canto partes de canções antigas que nem ao menos gosto, acho uma sorte este bom humor matinal acompanhar-me desde sempre, desligo a TV, escolho um CD, a música sempre consola-me nestes dias estranhos. Preciso de ocupação, trazer à mente, qualquer coisa que não doa, não peça reflexão ou análise, afinal é domingo e é páscoa. Abro a geladeira para guardar o queijo e lembro dos tempos que encontrava ali os ovos de chocolate que eu mesma fizera, embalara e escondera de mim. Na escola, em uma insólita aula de "Educação para o lar", aprendera precocemente a cozinhar, cuidar de bebês, etiqueta à mesa e lá confeccionara meu primeiro ovo de páscoa. Orgulhosa, sentia o doce sabor do trabalho cuidadosamente executado, o papel azul que o embalara, o laço perfeito que o enfeitara, fiz para mim o presente mais delicado. O chocolate ruim, os pequenos desacertos de uma confeiteira iniciante não quebraram o encanto do momento. Era doce e era bonito; a primeira saudade do dia.
Junto-me aos outros, ofereço ajuda, a necessidade de companhia e ocupação é covardia, eu admito. A ligação da manhã tira-me de mim um pouco, gosto de gente que faz o bem sem nem o menos imaginar, a ligação me salva, adia meu confronto. Enquanto arrumo a mesa, as ausências se aproximam, tomam-me de assalto, não há quem agora possa me proteger: sem cobertor, cama, ligação, música ou companhia. A segunda saudade do dia: saudade alegre das pequenas pessoas, que crescem tanto a cada hora, que colorem qualquer dia cinza. É ausência, mas o coração se alegra, uma lágrima desavisada escorre, cai na toalha vermelha festiva.
É almoço de família, alimento-me de sorrisos e comida de páscoa, talvez preencha o vazio, talvez não. Como os chocolates que não fiz, cujas embalagens sofisticadas não se comparam aos meus ovos azuis de fita rosa delicada. Chocolates de boa qualidade, mas que se limitam a serem chocolates sofisticados comprados e, por isso mesmo, são tão pobres. Ofereço-me para ir com ele fazer a visita de domingo, levamos alguns chocolates, a casa visitada hoje está fria, repleta de coelhinhos infantis nas suas paredes, mas não há uma única criança ali, o que faz com que a decoração pareça triste, errada.
Ela é feliz quando me vê, a comunicação é difícil, mas invento assuntos que ela possa somente concordar, não desejo trazer-lhe dificuldades. Quando não entendo sua confusa mímica, ela escreve e aponta as palavras no caderninho, a caligrafia não ajuda, mas meus olhos aprenderam a reconhecer os piores garranchos. Depois de dez minutos a temperatura no pequeno quarto tem uma queda brusca, a alma atormentada da sua dona começa a se manifestar, pergunto se gosta de festas, ela responde que não, pergunto se está se sentindo bem ela também diz que não. Aponta uma palavra composta no papel que eu custo a reconhecer, talvez não quisesse, na verdade. Ela insiste e ele, que é sempre desatento, traduz. A palavra em questão faz referência à morte, no caso a dela, a que ela diz só esperar. Lamento, argumento, mas ela carrega a teimosia hereditária, que eu mesma, suspeito trazer de herança. Deseja ir, não consigo mudar sua decisão, mas irá esperar, talvez mais do que gostaria, mas vai. Nos despedimos e sinto a terceira ausência: a oportunidade de uma convivência estreitada em outros tempos, talvez ela não estivesse tão determinada a partir, talvez eu pudesse libertá-la dessa decisão.
Caminhamos para casa de mãos dadas, corações entrelaçados, costurados por uma linha tênue de melancolia, porque alguém a quem amamos deseja partir. Recorro as minhas ausências do dia, são três e são, na verdade, saudades: de um tempo, de pessoas distantes e de uma convivência não efetuada. As duas primeiras são presentes de páscoa. Saudade de um tempo, é o reconhecimento do seu valor, sou hoje, porque fui aquilo um dia. Saudade de gente é necessidade de presença, afeto, ainda que distante. E a terceira é mesmo um aviso: só quem tem o que amar, tem o desejo ilimitado de nunca partir. Domingo de páscoa e eu acordei sentindo-me vazia, tarde de páscoa, eu percebo que é só saudade, quase noite e meu coração está repleto de gratidão, por ter tantos motivos para não querer me despedir. Saudade é sorte, não falta.
2 comentários:
É verdade eu imagino o que vai na cabeça de quem acha que ir é a melhor solução, quem acha que não tem nada a que se agarrar - e por vezes não tem - espero ter sempre alguma coisa a que me agarrar...
beijinhos
Imagino ser desesperador alguém pensar que não tem mais nada, mas o fato é que sempre se tem, custa é fazer o outro enxergar isto. Beijos Ana, Boa semana!
Postar um comentário