domingo, 31 de março de 2013

Saudade é sorte

   Manhã nublada de um domingo preguiçoso, acorda-se cedo, mas a cama segura forte o corpo inértil do feriado prolongado. É páscoa e cá dentro um vazio de sentir pena. Agarro o travesseiro, puxo o cobertor, cubro a cabeça, procuro proteção, para algo que em lugar algum estarei verdadeiramente afastada. Não há meias, pijamas de flanela, cortinas fechadas que me protegerão da falta, da ausência, do vazio congelante. Suspeito que na cama faz mais frio que na rua.

  Levantar-me, ocupar-me da higiene pessoal, depois um pouco da nutrição saudável (meticulosamente planejada), ligo a TV, que não ouço, não vejo, mas ligo. Cumprimento todos da casa, sorrio, canto partes de canções antigas que nem ao menos gosto, acho uma sorte este bom humor matinal acompanhar-me desde sempre, desligo a TV, escolho um CD, a música sempre consola-me nestes dias estranhos. Preciso de ocupação, trazer à mente, qualquer coisa que não doa, não peça reflexão ou análise, afinal é domingo e é páscoa. Abro a geladeira para guardar o queijo e lembro dos tempos que encontrava ali os ovos de chocolate que eu mesma fizera, embalara e escondera de mim. Na escola, em uma insólita aula de "Educação para o lar", aprendera precocemente a cozinhar, cuidar de bebês, etiqueta à mesa e lá confeccionara meu primeiro ovo de páscoa. Orgulhosa, sentia o doce sabor do trabalho cuidadosamente executado, o papel azul que o embalara, o laço perfeito que o enfeitara, fiz para mim o presente mais delicado. O chocolate ruim, os pequenos desacertos de uma confeiteira iniciante não quebraram o encanto do momento. Era doce e era bonito; a primeira saudade do dia.

  Junto-me aos outros, ofereço ajuda, a necessidade de companhia e ocupação é covardia, eu admito. A ligação da manhã tira-me de mim um pouco, gosto de gente que faz o bem sem nem o menos imaginar, a ligação me salva, adia meu confronto. Enquanto arrumo a mesa, as ausências se aproximam, tomam-me de assalto, não há quem agora possa me proteger: sem cobertor, cama, ligação, música ou companhia. A segunda saudade do dia: saudade alegre das pequenas pessoas, que crescem tanto a cada hora, que colorem qualquer dia cinza. É ausência, mas o coração se alegra, uma lágrima desavisada escorre, cai na toalha vermelha festiva.

  É almoço de família, alimento-me de sorrisos e comida de páscoa, talvez preencha o vazio, talvez não. Como os chocolates que não fiz, cujas embalagens sofisticadas não se comparam aos meus ovos azuis de fita rosa delicada. Chocolates de boa qualidade, mas que se limitam a serem chocolates sofisticados comprados e, por isso mesmo, são tão pobres. Ofereço-me para ir com ele fazer a visita de domingo, levamos alguns chocolates, a casa visitada hoje está fria, repleta de coelhinhos infantis nas suas paredes, mas não há uma única criança ali, o que faz com que a decoração pareça triste, errada.

  Ela é feliz quando me vê, a comunicação é difícil, mas invento assuntos que ela possa somente concordar, não desejo trazer-lhe dificuldades. Quando não entendo sua confusa mímica, ela escreve e aponta as palavras no caderninho, a caligrafia não ajuda, mas meus olhos aprenderam a reconhecer os piores garranchos. Depois de dez minutos a temperatura no pequeno quarto tem uma queda brusca, a alma atormentada da sua dona começa a se manifestar, pergunto se gosta de festas, ela responde que não, pergunto se está se sentindo bem ela também diz que não. Aponta uma palavra composta no papel que eu custo a reconhecer, talvez não quisesse, na verdade. Ela insiste e ele, que é sempre desatento, traduz. A palavra em questão faz referência à morte, no caso a dela, a que ela diz só esperar. Lamento, argumento, mas ela carrega a teimosia hereditária, que eu mesma, suspeito trazer de herança. Deseja ir, não consigo mudar sua decisão, mas irá esperar, talvez mais do que gostaria, mas vai. Nos despedimos e sinto a terceira ausência: a oportunidade de uma convivência estreitada em outros tempos, talvez ela não estivesse tão determinada a partir, talvez eu pudesse libertá-la dessa decisão.

  Caminhamos para casa de mãos dadas, corações entrelaçados, costurados por uma linha tênue de melancolia, porque alguém a quem amamos deseja partir. Recorro as minhas ausências do dia, são três e são, na verdade, saudades: de um tempo, de pessoas distantes e de uma convivência não efetuada. As duas primeiras são presentes de páscoa. Saudade de um tempo, é o reconhecimento do seu valor, sou hoje, porque fui aquilo um dia. Saudade de gente é necessidade de presença, afeto, ainda que distante. E a terceira é mesmo um aviso: só quem tem o que amar, tem o desejo ilimitado de nunca partir. Domingo de páscoa e eu acordei sentindo-me vazia, tarde de páscoa, eu percebo que é só saudade, quase noite e meu coração está repleto de gratidão, por ter tantos motivos para não querer me despedir. Saudade é sorte, não falta.



2 comentários:

Ana disse...

É verdade eu imagino o que vai na cabeça de quem acha que ir é a melhor solução, quem acha que não tem nada a que se agarrar - e por vezes não tem - espero ter sempre alguma coisa a que me agarrar...
beijinhos

Amanda Machado disse...

Imagino ser desesperador alguém pensar que não tem mais nada, mas o fato é que sempre se tem, custa é fazer o outro enxergar isto. Beijos Ana, Boa semana!