sábado, 30 de março de 2013

Prazer em conhecer

  Verdade inegável é que quase sempre somos muito enganados pelas aparências das coisas, situações e
pessoas. O que somos capazes de ver, em um primeiro instante, é tão somente uma parcela mínima do que uma pessoa é ou, ainda, os olhos são capazes de enxergar algo que ela nem mesmo é. E, desde cedo, somos apresentados a esta questão, com o esperto lobo, travestido de inofensiva avó de Chapeuzinho; com o Patinho rejeitado que transforma-se no invejado cisne; a nobre convidada desconhecida, na verdade pobre plebeia, que é encontrada pelo príncipe ao perder o sapato de cristal. Todos nós, invariavelmente, algum dia nos deixamos ser enganados pelo que parece e perdemos a preciosa oportunidade de enxergarmos o essencial em um desconhecido.

  Era a última aula de um curto curso de teatro universitário, que frequentei antes mesmo de chegar aos bancos de uma graduação. Procurei-o porque há muito gostava de artes em geral, porque queria conhecer pessoas de um universo incomum ao meu e, principalmente, porque desejava mesmo ampliar minhas perspectivas, abrir novas janelas, ver outros cenários, frequentar um mundo que eu não conhecia, mas suspeitava existir. Meus pais decidiram investir no curso porque dizia-se (e acho que ainda dizem) que o teatro era um ótimo exercício para os tímidos se sociabilizarem e tornarem-se mais seguros em público. Embora nossas motivações fossem divergentes, concordamos que a oportunidade seria muito boa. E, de fato, foi das mais importantes da minha vida. Não tanto para a questão da timidez, nem para um conhecimento vasto e profundo das artes cênicas, mas, principalmente, pela feliz constatação de que o conhecimento seria sempre o caminho mais prazeroso para o meu espírito. Depois da apresentação final, com a minha participação bem razoável, seguimos para uma confraternização improvisada em um bar próximo. Na mesa, veteranos, novatos e professores, com alguns havia estabelecido alguma proximidade, com outros, havia trocado apenas algumas palavras. Da mesa, somente uma voz ainda era desconhecida para mim.

  A voz em questão, era a de um rapaz, que já fazia parte do grupo de teatro, tímido, sério, contido, morava no mesmo bairro que eu, pegávamos o mesmo ônibus quase todos os dias e, talvez por já termos as faces reconhecidas um para o outro, houve um desinteresse em nos conhecermos de fato, nossos cumprimentos limitavam-se a um simples soerguer de sobrancelhas. Acabada a pequena festa, saímos os dois pelo mesmo caminho, já era bastante tarde, a rua estava quase vazia e, acho que ambos, sentimo-nos obrigados a alguma aproximação, no mínimo para garantir alguma segurança por estarmos acompanhados. Constrangidos pela obrigatoriedade do diálogo, iniciamos com algum assunto prosaico, banal e enquanto esperávamos pelo ônibus a conversa fluía de maneira cada vez mais natural. Entre a espera do transporte e a sua chegada no bairro, passou-se cerca de uma hora. E foram sessenta minutos leves,  reveladores e positivamente surpreendentes.

  Com a última voz conhecida descobri mais afinidade do que tinha com as amizades mais remotas, escritores favoritos, músicas, livros, astrologia e até mesmo filosofia de vida. Em uma hora compartilhei as minhas mais profundas percepções e senti-me plenamente compreendida. Ouvi. ouvi muitas das suas ideias, que pareciam ser as minhas, só que saídas da sua boca. Revelei-me, desnudei-me e tinha a sensação feliz de estar acompanhada em cada pensamento, de ter ouvida cada palavra que que saía carregada de intensidade emocionada. E, apaixonei-me. Apaixonei-me pela ideia de ter alguém no mundo com quem pudesse estabelecer tamanha sintonia, enamorei-me da, até então, inédita sensação de explicar sem confundir, de nem dizer e ser completamente compreendida. Emocionada pelo encontro inesperado. Pela ideia feliz de que alguém com quem eu nem ao menos simpatizara-me, a primeira vista, era das mais interessantes e interessadas pessoas que eu poderia encontrar no mundo. Despedimo-nos. Para sempre. 

  Opcional ou não, o fato é que nunca mais conversamos, nos esbarramos somente muito tempo depois e não sei se pela timidez inerente às duas personalidades, daquela que é capaz de conter o sorriso pela alegria de um encontro, ofuscar o brilho dos olhos e roubar o volume da voz, travestindo de indiferença o que é tão somente insegurança ou se pelo tempo que passara desde o último contato, que fez com que a relação retrocedesse ao momento em que só as sobrancelhas se cumprimentavam, voltamos a meros desconhecidos, de faces reconhecíveis. Depois, mudei-me de bairro e nunca mais o vi. Nem ao menos lembro o seu nome, o rosto já nem sei se sou capaz de reconhecer. Mas a sensação de não estar só, de ser profunda e delicadamente entendida esta nunca abandonou-me.

  Tal encontro ensinou-me que é preciso atenção e disponibilidade para enxergarmos alguém, de fato. Fez-me mais curiosa e aberta a desconhecidos e, ainda que, na grande maioria das vezes, os outros não me proporcionem um encontro como aquele, eu sigo esperançosa. Cada pessoa nova é uma oportunidade nova de tais encontros e mesmo as pessoas, aparentemente, já descobertas, são novas em um novo dia. Conhecer alguém devia ser sempre e de verdade, um prazer.



4 comentários:

Ana disse...

As primeiras impressões estão sempre cheias se pré conceitos, enganam muito. Comigo enganam muito, normalmente ganho amizade com quem me parece desinteressante à primeira vista e perco o interesse em quem parecia interessante e afinal, era só aparência.
Por isso é que gosto muito deste mundo dos blogues, mesmo que se venha a conhecer a pessoa pessoalmente, primeiro conhecemo-la por dentro, sem os tais pre-conceitos.
Beijos e boa páscoa

Amanda Machado disse...

É verdade, aqui pelos blogs conhecemos uma parte das pessoas que, geralmente, na vida de "fora" demora-se muito a nos ser apresentadas...Boa páscoa para você também! Beijos

J. BRUNO disse...

Algumas lágrimas rolaram enquanto eu lia seu texto Amanda, acho que são reflexos do que foram meus últimos dias, algo sobre esta necessidades que temos de encontrar pessoas nas quais podemos observar um pouco daquilo que tanto valorizamos... Eu já vivi situações semelhantes, algumas com desfechos bem parecidos, no entanto, ainda acho que é maravilhoso quando encontramos pessoas com quem conseguimos ter tamanha empatia.

Amanda Machado disse...

Lamento as lágrimas, mas é verdade que sempre buscamos alguém para compartilharmos algo.