sexta-feira, 19 de abril de 2013

Inusitado, mas é amor

  Já os vejo há alguns meses, encontro-os quase sempre a uma mesma altura do meu percurso;desde o primeiro encontro tive o desconforto do desvio, desci ao asfalto, dividindo espaço com os automóveis, porque ambos sempre utilizam todo o espaço da calçada. São uma dupla inusitada, pouco harmoniosa, eu achava. É uma mulher e o seu cão; donos da calçada, donos da avenida e da manhã.

  A mulher tem cerca de 40 anos, ou mais (quem sabe menos?), não sou boa em supor idades. É relativamente alta, cabelos castanhos, na altura dos ombros, com uma franja sempre desarrumada, sem maquiagem alguma, calça jeans larga - em um modelo que nem se vende mais - e camisa de malha, sempre larga, hoje vestia uma amarela, amarelo ovo, ovo caipira. E em todos os nossos encontros ela trazia uma sacola na  mão esquerda e puxava a coleira do cão com a mão direita. 
O cão é um basset, aqueles bichanos simpáticos pequeninos é também castanho, olhinhos molhados, mas indócil, nunca vi cão mais nervoso. Tem um latido assustador, estridente e rouco, muito rouco e àquela altura da rua, ainda me parece pior, porque é vazia e produz ecos. O latido do cão ganha mais força. Histérico e incontrolável o cão tem, ainda, um problema de locomoção, seu corpinho miúdo tende para o lado esquerdo e com as perninhas curtas, chega quase a se arrastar no chão. Da primeira vez que o vi, lembrei da matéria lida sobre o alto índice de problemas na coluna em cães dessa raça. No mais, a dupla pareceu-me incômoda desde sempre, tirando todos os outros transeuntes da calçada. 

  Depois de mais alguns encontros, percebi que a sacola da mulher nunca trocara de mão, o bichano e a sacola sempre estão na mesma disposição, percebi mais, a mão da sacola, a esquerda, não se move, e a perna, do mesmo lado é sutilmente arrastada; a mulher como o seu cão, também se locomove com dificuldades. A fria racionalidade analisa o quadro, o esforço da mulher magra, frágil, com meio corpo quase paralisado, insistir em puxar o cão nervoso, escandaloso, afetado, latindo para cada objeto que surge em seu campo de visão.

  Mas, hoje, enquanto corria, vi a dupla ainda de longe, a mulher da blusa amarela e o seu cão e não consegui me incomodar com o inusitado. Nesta manhã deixei de vê-los, para, finalmente, enxergá-los. São complementares, pensei. A paralisia do cachorro para o lado direito e o dela para o lado esquerdo, trazem algum equilíbrio à dupla. O cão é nervoso, enquanto a mulher tem a face mais plácida que eu já vi no mundo. O cão comanda e a mulher obedece, ele parece ser o dono dela e não o contrário. Ambos preenchem o vazio um do outro, andam pela rua unidos por uma coleira vermelha, gasta, mas laço indissolúvel. O que eu via todas as manhãs não era uma mulher com seu cão, mas amor.

  Porque amor não é o jovem casal num beijo cinematográfico no parque, poesia ou música oferecida, não são as famílias em almoço de domingo como na propaganda de margarina, não são afinidades infinitas, desejo desmedido ou borboletas no estômago. O amor não é plástico, não é estético e, definitivamente, não é superficialmente bonito. O amor é feio. Amor é doar, mesmo quando falta para si; estender à mão a quem lhe parece agora ignorante, fanático, indócil, mas lhe foi tão caro um dia; é não ter pudor com a ferida alheia, trocar curativos, dar remédio e assistência, sem medida; é fingir coragem quando o outro ameaça cair, ser fortaleça, mesmo frágil; é oferecer paciência, quando tudo no mundo pede urgência. Amor, amor mesmo é o da mulher com o cachorro; oferecer a única mão boa para o companheiro. E a do animal para com a sua dona, levá-la a um passeio, quando ninguém mais oferece companhia.

  Passo lívida, leve, atlética ao lado deles, eles não percebem mais têm muito mais do que eu, que só tenho rua, energia e corpo. Sorte mesmo é a deles de terem um ao outro. Enquanto corro sorrio ao amor, compreendo o amor e, finalmente, o respeito. Não há inveja, mas, de algum modo, desejo sinceramente um pouco daquilo para o mundo inteiro. Sigo a corrida, as pernas me acompanham, mas o coração é um pouco deles, agora. Hoje, correndo na avenida eu vi o amor e não me pareceu bonito, mas ele não tem que ser; só por ser amor já é o bastante. Já não desvio mais do amor, não desse...




4 comentários:

Anônimo disse...

E ha maior beleza do que esse amor??? Chorei... pq me identifiquei!!! "Amor é doar, mesmo quando falta para si; estender à mão a quem lhe parece agora ignorante, fanático, indócil, mas lhe foi tão caro um dia; é não ter pudor com a ferida alheia, trocar curativos, dar remédio e assistência, sem medida; é fingir coragem quando o outro ameaça cair, ser fortaleça, mesmo frágil; é oferecer paciência, quando tudo no mundo pede urgência." Meu trecho favorito de tds que ja escreveu... tao dificil vive-lo... ;)

Amanda Machado disse...

Jura, preferido?Pois é, é bonito agora depois de contemplação, só depois de tempo e paciência que eu vi isto. Difícil, viver isso? Mais difícil é não viver, acredite!

Ana disse...

Toda a gente devia ter um animal pelo menos uma vez na vida. é um tipo de amor que nunca acaba:)

Amanda Machado disse...

Também acho Ana, ainda tenho esta dívida a pagar...