segunda-feira, 13 de maio de 2013

A vida é caderno sem pautas

  Pelo menos no tempo da escola era assim: nos primeiros anos de alfabetização, os cadernos tinham que ser sem pauta. As primeiras palavras se enfileiravam em tentativas sucessivamente frustradas de linearidade. A folha completamente em branco, a princípio, era liberdade sonhada. Contudo já nas primeiras instruções, a página sem pautas, ganhava seus primeiros limites: escrevemos da esquerda para direita, do alto para baixo e só depois de terminada completamente a página é que podia-se passar à outra. Meu caderno era feio. Desobediente, quando não gostava de como as coisas iam, passava simplesmente à outra folha e deixava a anterior incompleta, pra depois voltar e decorar com um desenho, disfarce que não convenceu à professora. O irmão mais velho, neste tempo, escrevia com uma régua debaixo das palavras, limitando, domesticando as selvagens letras, que não escapavam a retidão da ferramenta. Meu irmão e sua letra quadrada. Somente mais tarde os cadernos com pauta mantinham as palavras em ordem, sem permissão para invadir linhas alheias, cada qual sobre sua  linha azulada específica, sem necessidade de régua. O texto ganhava ares amadurecidos, ordenados, como os de "gente grande". No ínício era difícil, mas depois, sem as tais linhas é que parecia inconcebível.

  Treinamento completo, aprendizado bem sucedido, até que aparecem as folhas de ofício para redação, sem pauta. Precisava reaprender a escrever sem linhas; acatada a inteligente sugestão da mãe, colocava uma folha pautada, embaixo da página branca e seguia o sombreado, escrevendo em linhas quase invisíveis. A vida de criança alfabetizada não era fácil, mas com o tempo, mãos e olhos se acostumavam. Como na vida a rotina nunca se demora, os ventos de novo mudaram de direção e as normas docentes proibiam-me de ter comigo uma folha com linhas, para fazer as provas. Mais uma vez, reaprendia a escrever linearmente, em uma folha sem linhas. O limite deixava de ser uma sombra longínqua, que amparava, e  precisava, agora, ser imaginado, lembrado e, mais que isso, introjetado.

  Suspeito que essa sucessão de cadernos pautados e não-pautados, desde o início, sugeriam o irreal, impraticável, mas absolutamente almejado à vida humana: linearidade. E por isso, nos sujeitamos às regras sociais, muitas sem o menor sentido; seguimos modelos prontos e temos tanta dificuldade em desenharmos nossa própria trajetória. É por isso também, que pedimos aprovação e aceitação à gente que não sabe estimular, somente podar, colocar freios em nossos movimentos, gente que acha que perder-se da linha é delito grave. Mas quem é que desenhou a linha universal, senão nós?

  A vida não é folha pautada, ainda que a gente goste e se sinta seguro dentro e restrito às linhas. A vida é caderno sem pautas com uma folha em branco, esperando só ser mudada, quando o texto não sai como o esperado. Sem professoras a dizer "comece daqui e vá pra lá". A vida, esta que encontra-se disponível a maioria de nós, é caderno que pode ser começado do meio, na metade da página e sem necessidade de fim. Por isso é que mudar de ideia não é mal, não ter uma vida parecida com a de qualquer outro, também não. No fundo, todos sabemos que perdemos mais quando estamos seguros, mas limitados, do que quando estamos suscetíveis, mas livres. A  folha em branco, não-pautada enche de medo, a quem deseja escrever com a mesma letra dos outros, mas é exercício necessário para quem não se limita ao conhecido. Quem nunca perde a linha, ainda não saiu do colégio.


4 comentários:

Anônimo disse...

Aaaaaaaaah, então vc já saiu do colégio faz tempo! ;) Esse foi pra mim??? Pois parece... hahaha!!!

Ana disse...

Se a vida fosse como a escola era mais fácil mas mais chato também, eu gosto de sair da linha. Penso que é preciso perdermo-nos muita vez para nos voltarmos a encontrar:)

Amanda Machado disse...

Eles sempre são!rs Nunca fui boa aluna!

Amanda Machado disse...

É quando escrevemos sem pauta que nos conhecemos...