domingo, 26 de maio de 2013

Ninguém entende

O que passa todos os dias aqui. Pensei em escrever para alguém, carta, e-mail, testamento (sem bens a serem deixados), diário, um desabafo, uma reclamação, pedido de ajuda, para que alguém respondesse um singelo, mas consolador "vai ficar tudo bem" e ao ler eu sentiria mesmo que ficaria, ainda que não fosse bem verdade. Eu não escrevo, porque não sei para quem, nem ao menos, o quê; eu não entendo, ninguém entende. E por isso ninguém responde. E por isso eu não sou salva por frase alguma.

  Dialogo comigo, brigo comigo, me perdoo e faço as pazes. Depois voltamos a ser amigas, sem rancor, sem mágoas, não me minto, não me resguardo, enfio a faca e com a mesma mão desenterro. Tenho mais do que sete vidas e deperdiço todas sucessivamente, mato-me e ressuscito-me, só eu posso fazer isso por mim. E ninguém entende. Ontem eu vi um moço tão triste, tão perdido e sujo, que andava sem direção, saco de lixo nas costas e desafiava os carros, atravessava a rua e andava direto até bater a cabeça contra a parede, deu dois passos para trás, quase caiu, mas continuou e eu não fiz nada. Não perguntei se estava bem, porque ninguém mais pergunta de verdade se os desconhecidos vão bem? Será que ninguém  mais se importa? Eu me importei e não perguntei. Sou covarde por isso. Sei.

  Depois que vi o moço, continuei andando, ouvindo música e tentando esquecer que eu o tinha visto. Vi alguém bater em uma parede com tanta força e não se quebrar, não se ferir, não se contorcer de dor, nem um gemido ele soltou. Uma parede contra a cabeça do moço e ele só seguiu em sua torta marcha. Eu já o tinha visto dezenas de vezes, mas nunca enxergado. Um moço triste, sujo e sem direção, precisou bater a cabeça na parede para eu me dar conta de que ele existe. Um homem na rua teve que quase morrer para eu gostar dele. Porque eu gosto. Por que eu gosto?

  E desde então, eu não sou mais a mesma, eu já não era, nós nunca somos. O homem com uma dor que não doi, não saiu da minha cabeça. Tomo banho, lavo os cabelos, vejo TV, leio um pouco, faço um bolo, tomo vinho com amigos e o homem que não sai de mim, me segue como uma sombra, sombrio,  me persegue em sonho.  Mas não me assusta, eu sou a pior parte; ele não. Ele é bom e não sabe, o mundo não o vê e se ele morresse, eu não saberia, eu nem sei se ele ainda vive. Um moço triste que segue o fluxo, não tem itinerário certo, só leva o corpinho magro com o lixo que recolhe na cidade, passam os carros, as pessoas, passa a vida e ele segue torto, manco, sem dores aparentes. Ninguém entende.

  Ontem eu vi uma tristeza que não se reconhecia infeliz, uma fome que não tinha desejo de comida, uma cabeça que batia na parede e não sangrava e fechei os olhos. Ontem eu vi alguém incapaz de sentir dor, reclamar, gemer, pedir ajuda, porque de tanto não verem-no ele acha que não existe, então não doi, não sangra. E se eu perguntasse se estava tudo bem, será que a dor dele doeria? Eu queria que doesse. Queria que ele sentisse fome e tristeza, queria que ele soubesse que alguém sabe da sua existência. Eu sei. 

  Eu vi, eu senti, eu me reconheci. Não esqueço. Já dormi, acordei e não apaguei; e eu não quero. Sou a testemunha de uma vida que quase ninguém vê, o homem quando bateu a cabeça na parede, atravessou meu peito, pele até atingir meu coração, a cabeça dele nada sofreu. Mas o meu coração nunca mais andará em bom estado. Vive em mim ele agora. Queria viver nele também, mesmo que por alguns poucos segundos. Ninguém entende e por isso não escrevo, ninguém me escreve. Uma cabeça, que não era minha, bateu contra uma parede ontem e a a dor que eu sinto é maior que uma cabeça contra a parede e até agora, ninguém entende.




4 comentários:

Ana disse...

É incrivel nos dias de hoje a miséria que nos rodeia e a maneira como nos tornámos indiferentes. Quando eu vivia na cidade cheguei a levar cobertores para um senhor que dormia na rua e sempre que o via pagava-lhe qualquer coisa que comer. Pode não ser muito, mas ajudando alguém sentimo-nos sempre melhor!
beijinhos

Amanda Machado disse...

Sim. E acho que essa nossa cegueira se repete para todo tipo de fome...estamos ocupados de mais com a nossa própria miséria, eu tenho achado. Beijo

Anônimo disse...

Ei, Amanda!

Você escreveu e, talvez, alguém te entenda.
Vai ficar tudo bem =)

Beijos!

Amanda Machado disse...

Vai sim! Beijo, Zi! ;)