domingo, 30 de junho de 2013

Verdade, homem.

  E são nas bibliotecas que a gente encontra um conhecimento de mundo admirável, organizado em prateleiras. E, todos os dias, a perspectiva de alguém, tantas vezes distante, renasce em um novo leitor. Conhecimento teórico, beleza em poesia, sentimento em prosa. Mas, livro é já conhecimento de segunda ordem, porque é a vida que ensina primeiro. Não suportaria a vida em clausura, solitária, cerceada de observação, nada ensina mais do que ler gente. Leitura superficial, aprofundada, interrompida ou comprida - aquela feita de uma só vez - leitura doce ou amarga, todo personagem deveria ter a chance de ser conhecido. Na vida ou nos livros, nenhuma leitura é improdutiva, nunca.

  E entre amigos, em uma mesa de um bar barato, que há muito deixei de frequentar, eu descubro meu novo personagem preferido. Na mesa atrás de mim, dois homenss, que quando cheguei  já estavam lá, mas que vi de relance, sem interesse, em um "olhar sem ver" tão habitual quanto a disposição das mesas. De início, mesmo perto, quase não ouvia a voz dos dois homens, abafada pela conversação frenética na minha mesa. Mas pouco a pouco, o diálogo dos dois amigos requisitava minha audição,  mais tarde, quase toda minha atenção voltava-se para eles; sem ver-lhes os rostos, os copos vazios ou cheios, nem trajes ou expressões corporais, só as vozes graves e o pigarro persistente de um deles, fumante, acho, pelo cheiro que sentia.

  Falaram de futebol, trabalho e acho até que falaram de um conhecido em comum, "a cidade é mesmo pequena" pensei eu, disfarçando a minha indiscrição com um copo nas mãos; mas o caso era engraçado e "infiltrada" eu tinha acesso a um segredo bizarro. Sem saberem, eu era a "parede de ouvidos" que os adultos falavam na minha infância.
  Mas de todos os assuntos, aquele que monopolizou completamente minha atenção, foi a frase definitiva de um dos homens, que sem se preocuparem com a possibilidade de terem testemunhas, faziam as mais sinceras confissões, regadas a álcool e potencializadas por ele. O tal homem  que começara um namoro recente, agora refletia sinteticamente o relacionamento anterior com a embriagada e ainda assim, tão sóbria frase: -  Sabe, aquela mulher, ela abriu uma fissura em mim. Ele disse, sem rancor na voz e só. Mais nada sobre o antigo amor.

  O homem da mesa vizinha falava de recomeço, sem grandes ilusões de cura das dores antigas, mas não tinha derrota em sua análise, ele voltava a um novo relacionamento, com o reconhecimento de uma "fissura"; uma mágoa antiga não curada, mas abandonada. Há muito não ouvia frase tão poética e nascida assim, de um comum, em um bar barato. Quis, pela primeira vez na noite, ver sua face, seus olhos, o dono de tão encantada frase, mas me faltou coragem para virar a página. Fechei o livro neste trecho, para dormir com a frase na memória.

  Certo ele, o homem tem toda razão, ninguém no mundo muda-se de uma casa por uma única fissura. Uma fissura besta não ameaça a estrutura de casa alguma. Há vezes em que a fissura é tão insignificante que ninguém mais vê e até o esforçado visitante, concorda com o dono da casa a fim de acabar com a procura, diz que viu, mas não enxergou coisa alguma; só o dono da casa dá-se conta da fissura na sua parede. E por menor que seja, sabe de cor sua localização. Não se apegar a pequenas fissuras, fez o homem seguir, não por ignorância, pelo contrário, por muita inteligência e um tanto de coragem. A fissura continuará lá, mas a sua casa tem total condição de abrigar outras gentes. Verdade, homem. Verdade. Guardo o livro, volto à casa. A boa leitura me faz dormir logo, leve e consolada pelas antigas e novas fissuras.




Um comentário:

Ana disse...

Também adoro observar pessoas e às vezes lá ouço as conversas ;) e tens razão, toda a gente que passa na nossa vida nos deixa fissuras.