quarta-feira, 4 de setembro de 2013

As raízes de cada um

   Era um simpósio, uma palestra ou algo assim, de impessoal. Era uma escritora, uma poetisa (também prefiro poeta, Cecília.), era para ver, entender, admirar alguém por seu trabalho; achava. Mas, em algum momento o que era profissional, passou rapidamente a ser pessoal; acho que tudo, no fundo, é para além do que fazemos. Tudo, em alguma medida, é sobre o que somos. Então, não há como dissociar, apegar-se a uma só parte e desfazer-se da outra.

  Encorajada pelos rumos que apresentação tomou, a mulher da sexta fileira se levantou e resolveu compartilhar algo de muito íntimo. Nunca gostei de depoimentos muito pessoais de desconhecidos feitos em público. Não gostava. Incomodava-me a exposição de uma alma, achava que dividir o que era de domínio particular, era uma violação desnecessária, era vulgarizar e desrespeitar os próprios sentimentos. Mas, não tenho achado mais. Não quando é uma opção pessoal.

  A mulher de cerca de quarenta anos, bonita, de voz firme, fala da descoberta de uma doença degenerativa sem cura. Discorre sobre a sua busca diária por tratamento, pesquisa ou algum estudo recente, que dê a ela esperanças. Divide com uma centena de desconhecidos as repetidas negativas da ciência em alimentar qualquer expectativa otimista e, no final, conclui com a sentença "depois dos sucessivos 'nãos' da medicina, encontro aqui meu primeiro e definitivo sim". Emociono-me mais com o seu depoimento do que com qualquer poesia lida naquela noite. Compartilho interiormente, por alguns minutos, da sensação de sermos salvos muito mais pela subjetividade do que pelo conhecimento científico. A desconhecida não teve nenhuma resposta positiva concreta, mas não desiste e apega-se a imaterialidade da poesia para sua cura. Agarra-se ao remédio possível e enche sua esperança dele.

  E eu tão fraca, tão cheia de pudores com o meu particular que me nego a exibir. E eu, que um dia me entreguei chorosa, depois de ser encorajada a continuar  um caminho, que desejava mesmo abandonar. Eu indignada com o estímulo alheio; eu ingrata, ignorante e estúpida com um "quase sim".    

  Para ela as palavras. Quando a vida parece não ter solução possível, o jeito é ser a  própria poesia e perto do desfiladeiro, inventar raízes que nós salvam da queda. O que a gente precisa mesmo é nunca  perdermos nós mesmos de vista, com poesia, oração, banho de chuva, passeio de bicicleta, uma boa música alta com dança livre, um passeio com o cão, uma tarde de apreciação do nada, do sol, dos meninos na rua, dos carros passando. Há dias que os especialistas falham, os cientistas não podem explicar  e o que tantas vezes não nos parece essencial é o que nos cura. O depoimento da desconhecida valeu-me bem mais do que o conselho do perito. Ela soou-me como poesia e não sabe, ela recolheu as esperanças de alguém do chão ao dividir generosamente uma parte dela que é também de tantos outros. Uma mulher exibiu suas raízes a desconhecidos e talvez assim proporcionou a cura que ela própria ainda não teve.



Um comentário:

Ana disse...

Como diz o poeta solidão é perdermos a nossa alma e não a conseguirmos encontrar. É preciso muita fé para viver como essa mulher, sabendo que o fim se aproxima, e muito provavelmente, um fim doloroso. A verdade é que temos data de validade mas não a sabemos, essa mulher sabe. Mas o nosso fim é sempre relativo, pode ser a qualquer momento...