Era um simpósio, uma palestra ou algo assim, de impessoal. Era uma escritora, uma poetisa (também prefiro poeta, Cecília.), era para ver, entender, admirar alguém por seu trabalho; achava. Mas, em algum momento o que era profissional, passou rapidamente a ser pessoal; acho que tudo, no fundo, é para além do que fazemos. Tudo, em alguma medida, é sobre o que somos. Então, não há como dissociar, apegar-se a uma só parte e desfazer-se da outra.
Encorajada pelos rumos que apresentação tomou, a mulher da sexta fileira se levantou e resolveu compartilhar algo de muito íntimo. Nunca gostei de depoimentos muito pessoais de desconhecidos feitos em público. Não gostava. Incomodava-me a exposição de uma alma, achava que dividir o que era de domínio particular, era uma violação desnecessária, era vulgarizar e desrespeitar os próprios sentimentos. Mas, não tenho achado mais. Não quando é uma opção pessoal.
A mulher de cerca de quarenta anos, bonita, de voz firme, fala da descoberta de uma doença degenerativa sem cura. Discorre sobre a sua busca diária por tratamento, pesquisa ou algum estudo recente, que dê a ela esperanças. Divide com uma centena de desconhecidos as repetidas negativas da ciência em alimentar qualquer expectativa otimista e, no final, conclui com a sentença "depois dos sucessivos 'nãos' da medicina, encontro aqui meu primeiro e definitivo sim". Emociono-me mais com o seu depoimento do que com qualquer poesia lida naquela noite. Compartilho interiormente, por alguns minutos, da sensação de sermos salvos muito mais pela subjetividade do que pelo conhecimento científico. A desconhecida não teve nenhuma resposta positiva concreta, mas não desiste e apega-se a imaterialidade da poesia para sua cura. Agarra-se ao remédio possível e enche sua esperança dele.
E eu tão fraca, tão cheia de pudores com o meu particular que me nego a exibir. E eu, que um dia me entreguei chorosa, depois de ser encorajada a continuar um caminho, que desejava mesmo abandonar. Eu indignada com o estímulo alheio; eu ingrata, ignorante e estúpida com um "quase sim".
Para ela as palavras. Quando a vida parece não ter solução possível, o jeito é ser a própria poesia e perto do desfiladeiro, inventar raízes que nós salvam da queda. O que a gente precisa mesmo é nunca perdermos nós mesmos de vista, com poesia, oração, banho de chuva, passeio de bicicleta, uma boa música alta com dança livre, um passeio com o cão, uma tarde de apreciação do nada, do sol, dos meninos na rua, dos carros passando. Há dias que os especialistas falham, os cientistas não podem explicar e o que tantas vezes não nos parece essencial é o que nos cura. O depoimento da desconhecida valeu-me bem mais do que o conselho do perito. Ela soou-me como poesia e não sabe, ela recolheu as esperanças de alguém do chão ao dividir generosamente uma parte dela que é também de tantos outros. Uma mulher exibiu suas raízes a desconhecidos e talvez assim proporcionou a cura que ela própria ainda não teve.
Um comentário:
Como diz o poeta solidão é perdermos a nossa alma e não a conseguirmos encontrar. É preciso muita fé para viver como essa mulher, sabendo que o fim se aproxima, e muito provavelmente, um fim doloroso. A verdade é que temos data de validade mas não a sabemos, essa mulher sabe. Mas o nosso fim é sempre relativo, pode ser a qualquer momento...
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