terça-feira, 3 de setembro de 2013

Não é tarde para "dar-se conta"

  Ele fala com sotaque, com um português pouco claro. E ela gosta quando as palavras habituais ganham um nova dimensão, outro som; gosta quando o que ouve não lhe sai claro demais, quando um sotaque a tira do seu conforto habitual. Quando se esforça e, por isso, ouve mais, ouve até o que ele não fala. Porque procura o rosto, o gesto, os olhos que auxiliam na comunicação. Tentar entender é também um começo de amor. Não querer entender é o contrário disto, é caminho para a indiferença.

  É um professor, um estudioso, mas parece compartilhar uma questão muito pessoal e isto o humaniza. Bastava este instante para prender a atenção tão flutuante dela, mesmo às duas da tarde, em uma segunda ensolarada. Nada existe mais lá fora, nem grama, sol, metas ou outros. Só um instante, este. Enquanto ele terminava suas conclusões teóricas e já virava-se de costas para os ouvintes, o doce desabafo: - A gente sempre se dá conta tarde demais, nós nunca estamos à altura de tempo algum. Entendo a paternidade depois que o meu pai se foi. Na melancolia da inconfidência de um desconhecido, ela se prende.

  Nós nunca nos damos conta de nada no tempo em que nos ocorre. A maior alegria, o ensinamento mais profundo, a maior declaração de lealdade, nossa vitória mais importante, a melhor comida, a perda mais dilacerante, todas precisarão de tempo para darmos a elas o seu verdadeiro significado. E enquanto isto não acontece, seguimos errando, atribuindo valores demasiados ao que esqueceremos na próxima primavera e subestimando aquilo que de fato nos marcará eternamente. A lição mais importante nunca foi anotada em caderno algum, mas está lá, em algum lugar "dentro"; o amigo inesquecível não está no seu álbum da escola, mas a memória o eternizou; o caminho decisivo foi tomado em uma fração de segundos, sem reflexão demorada, simplesmente porque não parecia crucial; o sabor da melhor comida, nos fará salivar uma dezena de anos depois. O que nos marca requisitará um tempo para o seu amadurecimento. O que seriam dos filhos, se já nascessem sabendo o que é ser um pai? É preciso exercer o seu papel de filho, antes da paternidade. Um pai descobre a paternidade quando tem um filho ignorante do papel de seu pai. Não é errado, não é triste, tampouco desolador é só o tempo de cada coisa.

  Enquanto desce as escadas vazias e por isso tão claras e largas, tenta lembrar de cada coisa que já aconteceu a ela e ainda não se deu conta. Antes de possíveis remorsos, se consola com a própria compreensão do tempo: não é necessário presença, só o entendimento. Que bom que ele entendeu! Pior se nunca compreendesse. Moço, não deve haver arrependimentos, nem dor. Um dia darão conta de você; um dia você dará conta do outro. E com ou sem presença terá sido bom ter vivido e, mesmo que aparentemente tarde, ter entendido. Ao estrangeiro, queria ela consolar. Mas ela também cumpre o seu papel de ignorar, ao menos por enquanto, as respostas mais difíceis.

  Tarde é quando a gente só valoriza o "dar-se conta" completamente. Ela não me parece ter se dado conta de muita coisa ainda, mas mesmo assim distribui os afetos que  não tem mais como guardar; ela amou o estrangeiro, teve pena dele, que pareceu não suportar seu entendimento tardio. Para ela só o instante existe. E talvez isto seja a inteligência mais genuína; a de eleger cada instante como o único possível.



Um comentário:

Ana disse...

Acho que os melhors momentos da nossa vida nem ficam registados, porque sã espontâneos, não estamos à espera deles, eles acontecem...