quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um dia, dois sóis

  Se não fosse o vento cortante, os casacos novamente desfilando contrariados pelas ruas, eu teria a certeza do nascimento de dois sóis hoje. Eu que nem gosto do calor, personifico alegria em sol; de preferência dois. Alegria sem motivo, por nada mesmo; contentamento aquecido por dois sóis brilhantes. De ontem para hoje, nenhuma pergunta foi respondida, mas incorporada, aceita com a humildade que sempre estamos a dever. Quando vai arrumar um emprego estável? Que sonho alcançará e qual deixará pelo caminho? Um dia terá filhos? Se não, irá se arrepender de não ter tido? Quando se mudará para um apartamento maior? Vai pagar suas próprias contas, sem dever ao banco, algum dia? Voltará a usar relógios de pulso? Se tornará uma consumista inveterada ou ativista política? Que coisa é essa que você é agora? Não sei; eu não sei de nada hoje. E não me preocupo com a minha ignorância, hoje ela é bem recebida.

  Quinta-feira comum, sem feriado, sem programa especial, nenhum prêmio da loteria, que de novo não joguei. Nenhum telefonema inesperado, nenhuma notícia transformadora, nem a comédia preferida na TV, sem o filmes que tenho cismado em repetir, nem a leitura atual de cabeceira eu quis fazer, sem vizinhos novos, os mesmos rostos no ônibus, nas ruas, no meu espelho (- O cabelo não tá bom não. Preciso cortar a metade. Ligo mais tarde para marcar uma hora no cabeleireiro.). O Cachorro a latir descontroladamente para o carteiro, como todos os dias, há anos; as mesmas crianças indo à escola. Os mesmos pais seguindo atrasados para o trabalho e o carro de um desconhecido, estacionado em frente à garagem. Não muda nunca. E ainda assim, no meu céu, dois sóis.

  As mesmas razões para a impaciência costumeira: a falta de gentileza dos atendentes, as filas demoradas, as praças das cidade cada vez mais deterioradas, buracos no asfalto, água acumulada em poças, destruídas subitamente por pneus, respingando na roupa limpa; políticos sujos e suas declarações deslavadas na TV;  recados mal educados em cima da mesa, no papelzinho colorido; indiretas nas redes sociais (terapias virtuais despudoradamente públicas); chuva sem sombrinha; o pedido trocado no restaurante, sem tempo para um outro e os meus dois sóis que não se apagam. Hoje eu não reajo, não me incomodo. Tudo passará, até meus dois astros. É preciso que eu desfrute o máximo do calor deles. Compreende? Não é passividade é só uma ação decidida de não ocupar-me demais com o que não brilha, não colore, não aquece. As mesmas coisas e eu diferente hoje. Por nada.

  A mulher de sempre, na rua, me para,  só o faz quando estou atrasada e me pede dinheiro para alguma obra social, mal entendo o que ela fala, mas dou minhas últimas moedas, porque subitamente gosto dela e de todos os outros tão os mesmos de todos os dias. Sem dinheiro para o transporte, volto para a casa caminhando, não reclamo, sou grata pela companhia constante dos meus dois sóis. Já passam das 18h e, leais, eles não me abandonam. E eu que não tenho resposta para pergunta nenhuma, nem sou dona de nada, nem dinheiro para tomar um ônibus, no final do dia, tenho mais, sou seguida por um fenômeno, pelo acontecimento bizarro de dois sóis.
    
  Fim do dia, chego em casa e na cozinha, uma fruta estranha, presente de um conhecido, experimento uma fruta desconhecida, não é doce, mas é nova. Se morresse hoje tinha mais um sabor entre os já conhecidos e dois sóis. E mesmo num dia ordinário qualquer, com as mesmas pessoas de todos os dias, um milagre sempre está por acontecer. E o sonho surreal de uma pessoa e seus dois sóis podem sim fazer brilhar a esperança há muito no escuro.



Um comentário:

Ana disse...

São dias muito bons...