domingo, 6 de outubro de 2013

O caminho que se faz pelas margens

  Por algum motivo, de novo, pensava que poderia fazer o caminho solitário, bastava o carro, mapa, combustível, uma seleção de músicas e algum dinheiro. Escolheu a solidão para não ter que se explicar no caminho, ter alguém que incitasse as dúvidas. Os barulhos externos, frequentemente, colocam em xeque o objetivo pretendido, bastavam  as vozes internas que já abalavam, e muito, a estrutura. Apontou no mapa o destino, escolheu dia e hora, mas o motivo, além da própria estrada, ainda era desconhecido. Descobriria durante a viagem, numa espécie de epifania, em uma leitura de placa, na conversa que ouviria entre dois estranhos no restaurante à beira da estrada, na paisagem árida que cercaria grande parte do caminho, interrompida pelas pradarias verdes, que fatalmente comporiam o cenário. Planejado cada passo, partiria.

  Na mala, quase o essencial; mesmo os viajantes mais acostumados sempre acabam por levar um excesso, ainda que escondido e previamente justificado, de bagagem; talvez precise disto, talvez um desses quebre e eu precise de um reserva, talvez faça mais frio que o esperado. Não teria tempo para paradas improvisadas, correria sempre a frente do relógio de pulso, comprado especialmente para viagem; poderia gastar menos tempo para comer, descansar, fumar, mas nunca além. Economizaria gente e tempo, nada que adiasse sua chegada, nada que o impedisse de seguir viagem.

  Já na primeira hora de viagem, se confundiu com as placas, faltava alguma informação, ainda não estava perdido, mas achou que prevenir qualquer mínimo desvio da sua rota era cautela necessária, seguiu até o posto mais próximo e a sua primeira resolução era abalada: pediria a ajuda de algum funcionário, sua primeira relação verbal era assim estabelecida.Talvez a viagem não se limitasse aos seus planos, talvez a sua crença na independência e solidão tivesse que ser revista.

  Quanto mais afastava-se do lugar de partida, mais presente ele se tornava: as pessoas, o cheiro, as cores de um lugar só ficam mais claros, quando se toma distância. Não se perde, não se apaga; a cada curva, uma lembrança nítida e por isso a opção pela solidão nunca é verdadeiramente possível. Quis desistir, pensou em voltar, mas estava perdidamente comprometido com o final. E se lembrou de uma frase de um filósofo francês que há muito tomara como ideal, era Camus que dizia, em um livro descoberto na adolescência, que "viver é se comprometer". E sentia-se mais e mais comprometido a cada passo, por isso evitava os laços, esquivar-se de cada início de diálogo era seu talento, estava comprometido demais com cada escolha, precisava facilitar o caminho e limitar os compromissos.

  Durante a viagem, quase nada na estrada sairia como planejado, nas margens da estrada envolvia-se com novas histórias, que até se pareciam, em alguma medida, com outras que conhecera em alguma de suas viagens, pensava que as personagens até se repetiam, mas sempre encontrava em cada um deles algo inédito, peculiar e inesquecível. Nada se repete nunca. E a frase de Camus era carregada como um peso, uma cruz, seu karma pessoal. Comprometer-se não deveria ser tão duro, opressor e pesado. E se tivesse aprendido errado? Interpretado mal? Há alguns anos alguém sugerira a ele que relativizasse mais, nada era tão definitivo.

  Cansado de dirigir, de se afastar, cansado de não saber o que faria quando chegasse, guardou o relógio, parou de economizar tempo, dinheiro e disposição. Se encontrasse uma parada hospitaleira não calcularia o momento de partida, ficaria até cansar, até conhecer todas as histórias do lugar. Não seria tão avarento com as horas e os laços, não se pouparia  da vida. Desistir de seguir a viagem obstinado, não significava abrir mão de um compromisso. Se comprometeria com outras coisas, uma de cada vez, sem pressa, sem a sisudez que imprimia no seu objetivo. - Ah Camus, viver é sim se comprometer, mas sem dor, sem a gravidade que a sua frase, um dia, incorporou. Compromisso não é nó, cela, nem flagelo, mas é passível de concessões, abertura e muita liberdade. Comprometimento está mais para margem, do que estrada, mais nas curvas, do que nas retas, mais para um espírito flexível, do que para um teimoso.

  Talvez demorasse mais a chegar ao seu destino, talvez nunca chegasse, escolheria uma rota surpresa, voltaria ao lugar de partida sem completar a viagem, talvez lá, fosse mesmo o seu destino. Nunca se sabe. O que faz de alguém um viajante, não são propriamente os quilômetros rodados, mas o que de novo ele traz, após a sua chegada, que não caberia em bagagem alguma; que ao contrário dos souvenirs, não pesam, não acumulam pó, pelo contrário, abrem espaço, só fazem deixar carro, malas, comprometimento e vida mais leves. Esta sim, uma boa filosofia para o viajante.




Um comentário:

Ana disse...

Acho que há muitas viagens que temos mesmo de fazer sozinhos e até ao fim, apesar da solidão. Outras acompanhados, mas acho que enquanto não conseguirmos viajar sozinhos nunca o conseguiremos fazer acompanhados.