quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Um jeito pomba

   Na minha rua tem um monte delas, sobre os telhados das casas mais altas, nos fios de alta tensão, nas poucas árvores, que ainda restam. E muitas passeiam tranquilas feito gente no meio da rua, que felizmente ainda não está tomada por carros. Não há um só dia em que eu não veja, ao menos, uma pomba na minha rua. A convivência não é difícil, não para mim, cujo telhado continua limpo, cuja roupa e cabelos nunca sofreram, nenhum tipo de acidente. As pombas da minha rua são animais burocratas, aparecem pela manhã, todos os dias, movimentam-se livremente pelo espaço conquistado, vão embora ao meio-dia, impreterivelmente e só retornam no outro dia. As pombas da minha rua são mais donas da minha rua, do que qualquer outro morador.

  Ao longe, são todas iguais, diferenciam-se aos meus olhos alguma pomba acidentada, com algum ferimento, um andar mais difícil ou pela cor, brancas, brancas com manchas cinzas e cinzas por completo, de resto, são todas pombas como outras de qualquer outra rua. Diferente dos cães, gatos e cavalos, com os quais compartilho um pouco mais de afinidade, nas pombas, ainda não tinha vislumbrado uma única ação que denotasse alguma personalidade. Até hoje de manhã.

  Da janela do apartamento observava a rua, esperava alguém, alguma novidade, esperava o inesperado, que não aparecia. Em um última tentativa de flagrante, vejo-a pela primeira vez. Na beirada da calçada, andando pacífica sobre o meio fio. Sem pressa, sem medo, econômica, utilizando um espaço minúsculo, esquecendo do resto da rua inteira à sua disposição. Foram alguns metros andando, todos na restrita linha reta imaginária, que ela obedecia. - Pomba estúpida! Tantos caminhos ao redor e ela segue este único, limitado e vazio. Deste lado só esta pomba, cumprindo uma sina tola, afastada do grupo mais efusivo. Já abandonava a janela, quando o gato de rua, este sim, mais que um burocrata, morador efetivo.Perseguidor das pombas, único motivo de intranquilidade para as visitantes.

  Altivo o gato se aproxima primeiro do grupo, afastando uma a uma em voos desesperados. Esperava ainda, testemunhar a fuga da pomba metódica, mas impassível ela adiava seu voo, lentamente a aproximação do gato se estabelecia e a tranquilidade da pomba não se abalava. Até ficarem a poucos centímetros de distância um do outro. Eu da janela, única testemunha e única também na possibilidade de salvar a pomba; talvez se gritasse, espantaria o gato ou apressaria a pobre. A esta altura minha vida e a da pomba estavam profundamente entrelaçadas. Mas minha rua é apenas um microcosmo da sociedade animal, de um bairro, de um cidade, um estado, um país, um continente. Milhões de gatos assassinarão um pomba hoje, para se alimentarem, ou não? Interfiro ou deixo ambos selarem o destino conferido às suas espécies?

  Resolvo esperar e tento entender a coragem súbita de uma pomba. A pomba desafiava o gato, mais que o gato ela arriscava a continuidade da própria vida, em nome de algo que, a mim, será eternamente ininteligível. Mas ela, por outro lado, deveria ter alguma boa razão para abrir mão da sua segurança e  enfrentar um estado tão cristalizado. O gato é o dono da rua; a aproximação do seu oponente deveria colocá-la em rápida fuga; uma pomba deveria seguir seu grupo e não o fez.

  O gato levantou uma das patas, a pomba não teria mais tempo para um voo. O gato mostra-lhe os dentes e insistente a pomba resiste. Surpreendido, o gato abaixa a pata, dá um pequeno passo para o lado e observa a pomba que o desafiou.

  Incrédulos, o gato e eu contemplamos a pomba. A vida dos animais não me parece diferente desta a que estamos submetidos. Às vezes, as pessoas são demasiadas estúpidas e tomam atitudes incompreensíveis para darem à sua existência o movimento que ela merece. E esta estupidez é legítima, ela traz à vida as surpresas que não passam nunca sob nossas janelas. A pomba rejeitou seu sono tranquilo, por uma vida sobressaltada, a pomba não se manteve à janela em busca de novidades, ela inovou. A pomba desafiou o estado de permanência da minha rua. As pombas da minha rua, são pombas repletas de personalidade, mais até do que os gatos.



Um comentário:

Ana disse...

Aprendemos imenso quando observamos os animais. Muitas vezes invejo-os. Têm uma vida despreocupada, livre, sem horários e sem burocracias. Limitam-se a viver.