domingo, 1 de dezembro de 2013

Nas próprias mãos

  A capacidade de entretenimento com as coisas aparentemente banais, quando se é criança, é fabulosa. Isto acontece, acho, porque as nossas referências ainda não são limitadas e tragicamente definidas; realidade e imaginação não são absolutamente diferentes. 
  Do outro lado da rua, vejo-a divertindo-se, rindo a cada segundo e, vez ou outra, gargalha, isto tudo por uma única sacola que tem nas mãos. Com o plástico azul ela, sozinha, tem toda a felicidade do mundo, não é exagero, as felicidades do mundo só cabem mesmo em minutos muito particulares, prosaicos e para uma criança, suspeito que esses momentos aconteçam em um volume maior de vezes. Ela tem cerca de sete ou oito anos e rouba os olhares de todos da rua. Sua alegria desafia cada um de nós a lembrar, qual foi a última vez que sorrimos daquele jeito. Sua felicidade é passível de inveja, mas também de medo. E se ficou perdida a capacidade de apanhar numa sacola toda a felicidade do mundo inteiro e se nunca mais acontecer? E se a menina, agora incrivelmente feliz, por descuido ou força do destino perder-se da sacola azul, quem virá em seu auxílio? Há ajuda possível para este tipo de perda? 

  - Uma sacola. Perdi minha sacola azul, alguém a viu? Era uma sacola como todas as outras, era azul, pequena, barata, achada na rua, voando sozinha, sujava a paisagem da cidade, marginalizada, desprezada. Até eu me lançar em sua direção, correr, persegui-la e a chamar de minha, colocar toda a felicidade do mundo nela e, de repente, a perdi. Diria a menina.

  Enquanto a feliz bailarina desenvolve mais um dos passos de sua livre coreografia, junto da sua sacola azul, uma mão arranca subitamente sua diversão e  leva a garotinha para dentro de uma loja. Vejo-a ainda protestar baixinho, fazer uma carinha de brava e pedir de volta a sua felicidade, que é rispidamente atirada ao pequeno lixo do comércio. A própria mãe confiscara sua alegria e, agora, aborrecida ela experimentava um sapato, do qual não parecia gostar minimamente. Minutos depois, ela sai, novamente solitária, da loja e encontra outra felicidade...

  Uma poça d'água na qual enfia o pé com toda sua potência infantil. Molha muros, carros, assusta um cão e um rapaz que passeavam pela alameda e molha sapato, meia e a metade da calça. Agora, sou eu quem não me contenho e redescubro minha sacola azul, sorrio, gargalho e me sinto grata pela cena recém flagrada. A capacidade de superação de uma criança ainda é igual ou maior que a sua imaginação.  

  A vida é uma sucessão de sacolas arrancadas, de censuras injustificadas, mas é também o desfilar de inúmeras poças de água nas calçadas. Nada do que parecia ser tão fácil ou, ao menos, natural, foi de fato. O que pareceu tão complicado ou doloroso, no início, mais a frente se justificou como degrau, possibilidade de crescimento. Todos precisamos lidar com as frustrações de sermos rejeitados, subestimados, mal amados, mal sucedidos, para assim quem sabe, reconhecermos o valor do acolhimento, da expectativa alheia correspondida e do Amor, este com letra e dimensão maiúsculas. Não se deixa felicidade alguma perder-se ou ser arrancada pelas mãos alheias. Vez ou outra perde-se o caminho, esquece-se o jeito, abandona-se um gosto e deixamos que alguém nos retire o que parece-nos mais precioso, mas a verdadeira preciosidade mora dentro. O maior tesouro não nos escapa nunca, se não quisermos.


Um comentário:

Ana disse...

"Todos precisamos lidar com as frustrações de sermos rejeitados, subestimados, mal amados, mal sucedidos, para assim quem sabe, reconhecermos o valor do acolhimento, da expectativa alheia correspondida e do Amor, este com letra e dimensão maiúsculas. Não se deixa felicidade alguma perder-se ou ser arrancada pelas mãos alheias. Vez ou outra perde-se o caminho, esquece-se o jeito, abandona-se um gosto e deixamos que alguém nos retire o que parece-nos mais precioso, mas a verdadeira preciosidade mora dentro. O maior tesouro não nos escapa nunca, se não quisermos."
Soberbamente veradeiro e belo, sabes, eu muitas vezes sou como essa menina pequena, entretenho-me com tudo e mais alguma coisa:)