sexta-feira, 4 de abril de 2014

Se chove

  Amanheceu nublado. Um dia todo que ameaça chuva. O céu cinza da manhã, que insistiu pela tarde, se aprofunda no tom, até um quase negro e toda água adiada não espera mais, se solta, se desprende do alto e ganha a liberdade do ar, se joga, corre sem medo, até morrer no chão. Olhei o céu pela manhã, assisti-o por toda a tarde e, ainda assim, assumi o risco do calçado inadequado; do guarda-chuva quase decorativo, a funcionalidade foi perdida noutros temporais; da volta para casa adiada sucessivas vezes. - Eu não tenho medo de chuva. Pensei, provoquei, me convenci.

  Enquanto um aguaceiro espanta atletas da pista de corrida, faz "não-corredores" dispararem rumo a um abrigo, escolho o meio da cobertura, rodeada de gente que me servirá como escudo da água implacável, sou um "manual de sobrevivência a temporais". Além dos meus pés, outros tantos sapatos errados, sandálias, chinelos, sapatilhas de pano, a minha já está encharcada, a barra da calça, sem cinto, completamente molhada, me faz ocupar uma das mãos com o cós, que a cada minuto, insiste em descer um pouco mais. O cabelo bonito, escovado, foi o primeiro a sucumbir, o artificial não resiste às águas. Desconhecidos molhados chegam a todo o tempo, o ponto de ônibus apinhado de despreparados, desprevenidos ou só gente que assume o risco. 

  O ônibus não vem, a plaquinha do táxi anuncia que ele não está livre - tanto melhor, a concorrência a esta altura seria selvagem! - o dilúvio não dá trégua, os desconhecidos falam desesperadamente aos celulares, os carros molham meus escudos, molhados, naturais, bonitos. Sob a chuva há tanta humanidade. Talvez pudesse chover mais na cidade e aprenderíamos ser mais gente, acho. A chuva desarma, surpreende, apressa ou atrasa trajetórias; apavora, faz a palavra sair indignada, bruta, tola. Sob a chuva somos humanos-humildes, submissos a um poder maior, desconhecido, sem ouvidorias, leis ou qualquer proteção jurídica. Somos pés encharcados, cabelos desalinhados, compromissos adiados, vidas lavadas de cima a baixo. Sob o batismo profano das chuvas, nos tornamos mais gente e menos casca.

  Debaixo da chuva, de sandália rasteira, com um guarda-chuva precário, somos tão mais humanos e por isso tão mais bonitos. De todas as possibilidades positivas de uma chuva, encontro mais essa: a lição de humildade. Gente precisa de chuva para crescer e nem sabe, gente precisa de um temporal no começo da noite para entender que os planos não seguem intactos, alinhados e definitivos, que somos mais bonitos quando desarmados e frágeis e que o carro ocupado ou o ônibus que nunca vem não é o fim, mas um enquanto. Logo a chuva passa e é só desviar das poças e seguir o caminho ou pisar em cada uma delas, como crianças, com força, sem medo, sobre um solo irregular, inseguro, mas, por enquanto, limpo.




Um comentário:

Ana disse...

é isto que eu amo nos teus textos, dizes tanto, tanto com um texto, a chuva do céu, as tempestades da vida...:)