sexta-feira, 20 de junho de 2014

O homem só


  Nenhuma coragem é maior do que a de ser só. Não solitário por falta de companhias, por uma vida reclusa em nome de uma timidez excessiva ou falta de habilidade social, mas completamente só por escolha, por vocação, por atender a um chamado da vida. A solidão resignada de um destino.

  A verdade é que ninguém se conhece mais e profundamente do que o homem que tem somente a si, que só conta com a sua própria força o tempo todo. O solitário é apresentado a um eu desnudo, repleto da mais pura essência, com as benesses e as falhas que os olhos alheios não podem alcançar. É  na solidão que sabemos quem somos ou não, daquilo que somos capazes e daquilo que nos abstemos, porque ninguém sabe o tamanho da nossa covardia como nós mesmos. E se ver assim, sem os enganos dos outros, sem as máscaras que elegemos ou o brilho que aceitamos é para poucos, para gente cuja força é testada sobremaneira a todo o tempo.

  Então, quando ele coloca os pés na arena, ele  sabe que os gritos não são para ele, os holofotes não o iluminam, os flashes não se voltam para a sua direção, as honrarias certamente estão direcionadas a outro, as músicas ensaiadas quase nunca o evocam, mesmo assim ele permanece, atende a um chamado remoto, subjetivo, inexplicável. Depois do apito inicial, ninguém é tão solitário, tão injustiçado, ignorado e, ao mesmo tempo, tão necessário como o homem da camisa número um. Enquanto os outros correm, driblam, são aplaudidos a cada passe desconcertante, ele continua duro, sem balé, sem a graça dos aplaudidos. O homem da pequena área é o mais esquecido, o menos reverenciado e por isso, o mais resistente, o homem constante, que não abandona a luta, os companheiros, nem a própria solidão.

  Do outro lado do campo, um lance que ele não pode assistir, um gol que os seus companheiros comemorarão entre si e ele, distante, sente o gosto doce do alívio, ao mesmo tempo que experimenta o amargo da solidariedade. O outro camisa número um foi ao chão, sucumbiu aos pés de um jovem ídolo, entortou-se todo, até que, finalmente, humilhado, terminasse no chão desvalido. O homem da pequena área sente pelo seu único igual. Um homem que sozinho vive a intranquilidade de cada lance próximo.

  Ao atacante,  arte, dança, movimento, amplitude, glória, o nome exaltado aos quatro cantos de um estádio apinhado; ao homem que joga com as mãos, a seriedade de quem a todo custo precisa impedir o momento mais esperado de uma partida. O homem que ataca é o gênio, o artista e, na pior das hipóteses, o homem cuja a inspiração é perdida temporariamente; ao homem da defesa, a santidade ou a desgraça mais completa.

  Em um minuto, o homem gol cai, perde a bola, se levanta, recupera e, de novo, tem nos pés a possibilidade da glória maior, em um segundo, o homem da camisa número um é alvejado com a pontaria do algoz amado publicamente. Ao homem da pequena área uma segunda chance está sempre atrelada à possibilidade da humilhação repetida.

  Solitário ele sofre, sozinho, ele carrega consigo a responsabilidade única da precisão, da saída perfeita, das mãos firmes, certas e definitivas. O homem de quem não esperam nada além da perfeição, é o homem mais sério, menos carismático, o homem que carrega o peso de noventa minutos, dez companheiros, centenas, milhares, milhões de fanáticos que só se lembrarão das suas faltas, ausências, falhas. O defensor mais bem sucedido é aquele não lembrado, é aquele cujo nome é sumariamente esquecido.

 Ao homem da pequena área, meus cumprimentos, minha admiração e a minha mais apaixonada torcida. Sou muito mais pela defesa do que ataque. E eu que não quero ver gol, compartilho um pouco da sua experiência de solidão, homem da camisa um.




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