quarta-feira, 25 de junho de 2014

Saberão dela

  As pessoas não moram nas grandes coisas. O espetacular, o incrível, a excitação é passagem, não duração.  O fogo de Prometeu não queima todos os dias, são as pedras de Sísifo que  rolam a vida toda. A visita do fogo é essencial, mas o rolar das pedras é o que sustenta um homem. Depois do fogo, Sísifo continua o seu rolar de pedras. A insignificância diária é o mais precioso presente que alguém pode possuir. Na insignificância nossa de cada dia é que nos eternizamos.

  Então, enquanto ela prepara as aulas da semana seguinte, recolhe as roupas secas do varal, olha nostálgica para foto na estante, abre a porta para o cachorro entrar na cozinha, confere a lição do filho e por um segundo pensa como foi chegar ali: aulas, roupas, passado, cachorro, casa, filho; ela pensa no que ficará, se um dia saberão dela. E se nunca souberem, que existência ela terá vivido? Quem a contará? Quem falará sobre ela, inventará desfechos ou descreverá essa cena, agora, íntima? Terá ela uma grande história a ser contada? Não hoje, não essa. Sonhou grande e tudo agora comezinho, parece pequeno. A casa, a desordem dos armários, o cachorro marrom, o filho castanho, o leite que não foi buscar no supermercado, a cafeteira queimada e a voz ocultada dentro de si, que ela há muito não escuta.

  Não há com o que se preocupar, certamente saberão que ela existiu. Vão andar pelos mesmos caminhos, que serão outros, mas levarão a um mesmo destino, este que agora ela vai ao encontro. Lerão os livros que um dia ela leu, chorarão sobre as mesmas notas de Requiem de Mozart, que tanto a emociona. E também sentirão saudades de um tempo que não viveram; falta daquilo que nunca tiveram e um medo que não saberão de onde vem. Terão uma coragem desmedida e surpreendente, algumas vezes; amarão sem suspeitar que é finito, sempre. E um dia saberão sim, que ela existiu.

  Mesmo que que ela não tenha seu nome conhecido, mesmo que o seu rosto de sardas seja oculto e, ainda, que nunca tenham ouvido a sua voz; saberão dela.

  Saberão dela pelo amor doado, pelo sentimento não reprimido, economizado ou barganhado. Saberão por cada palavra comemorada ou falida. Um dia saberão dela, não pelos filhos paridos, nem pelos livros escritos ou árvore plantada. Mas saberão, especialmente, pela dúvida, ignorância, saberão sem saber; pelo incômodo, pela afetação pura, que fará dela eterna, continuada; uma desconhecida infinita. E, saberão que ela existiu, pela lama da bota, pelo suor das têmporas, pelas noites sem sonho.

  Porque os fogos, as fotos, Veneza, Rimbaud e a prataria ainda existirão, mas a vida sabida é no castanho do filho, na cafeteira estragada, no leite que ainda buscará no supermercado. No rolar das pedras, além de vida, há também um pouco de poesia e,  no final, só ela é que lhe dará a eternidade sonhada. E por isso, sempre saberão, em alguma medida, de todos nós.




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