quarta-feira, 23 de julho de 2014

Feito um cão com uma rosa

   A bondade assusta. É só ver na desconfiança de um cão de rua, no seu espanto e no olhar de horror, quando lhe oferecem generosidade ou qualquer tipo de afeto, o quanto o cotidiano endurece. Ofereça carinho para um cão sem dono e ele recusará, se defenderá, achando que vai apanhar. Levante a mão com ternura e ele não entenderá o gesto, não terá tempo de discernir a profundidade da oferta; uma mão boa é aquela mesma usada para espantá-lo. Acostumamos muito com o ruim. Olha-se para as cicatrizes e vê-se novas feridas; olha-se o preço, antes de qualquer valor; reparamos nos passos, antes dos olhos; as segundas intenções chegam antes mesmo das primeiras e as primeiras impressões perduram mais que as segundas, terceiras ou quartas.

  Enquanto eu descia assistia-os de longe, em uma sintonia, para além de amorosa, mas de sobrevivência mesmo; e é quando os vejo juntos, unidos, inseparáveis por  um pacto mudo e, provavelmente, ignorado por ambos é que penso que a vida é mais imperiosa que o amor. O mendigo fiel a sua cadela, carrega-a para todo canto da cidade, já os vi no centro e nos bairros mais distantes, quilômetros de lealdade e generosidade recíproca, a pobreza dividida é maior que qualquer ouro individual. Estão sujos, feios e invisíveis para o mundo, mas são essenciais e bonitos um para o outro.

  A cadela só aceita as ordens e os afagos do seu dono e o dono só se comunica com a sua cadela. Há um mundo impenetrável construído por ambos, penso que só ele escuta os latidos dela e só ela reconhece a voz humana dele. Eu que nunca me atrevi a uma invasão ou visita a este universo tão particular, já vi muita gente, em vão, tentar qualquer comunicação com ambos, que mudos, amedrontados e absolutamente sincronizados ignoram comida, roupas, leite quente e sobrevivem apenas com o que acham, porque uma mão estendida não é compreendida por nenhum dos dois. Quanto sofrimento terá cimentado o muro que cadela e dono ergueram em torno de si?

  Chego ao lugar onde deveria ir, meu mundo é maior que o de uma cadela e seu dono e, por isso, imensamente mais ameaçador. Quase não espero, entro, sou recebida com sorrisos e olhos cor de mar - eu que nunca tinha visto olhos desse azul - desconfio da cor e dos sorrisos, a gente se acostuma demais com o ruim. Que interesse há por trás da bondade que me dão? Que merecimento um alguém sem dono terá, para um gesto de generosidade? E eu que estou sendo seguida, constantemente, que sou alcançada por ela em tantos lugares: na fila do ônibus, no meio de uma reunião, enquanto termino um trabalho. Quase a rejeito, por desconfiança, medo, falta de traquejo. A bondade que me ofertam e que eu receio em receber.

  Volto para casa muda de gratidão e surpresa. Na rua de casa tem muitos jardins, nenhum é mesmo meu, mas tenho vontade de chorar toda vez que ensaio uma despedida,  eu que já perdi tanto, porque perdemos um pouco por dia, mas os jardins da rua, como perder? Em um desses jardins hoje eu vi as rosas escarlates, resistindo ao inverno, estão com as pontas das pétalas enegrecidas, queimadas pela geada, mas continuam vivas. Como a cadela e o seu dono, no frio da madrugada.  E eu que admiro o laço antigo dos dois errantes, eu que me enrubesço com a bondade de um par de olhos d’água, desejo a resistência sutil da rosa vermelha do jardim que não é meu, essa bondade que surpreende na dureza do cotidiano, todos os dias, até o meu último. Aqui, para sempre. 




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