sábado, 26 de julho de 2014

Agora, um outro lugar

  Mudou. E só depois de algum tempo é que eu percebo que já é outro. Para mudanças demoradas, a percepção também é lenta. Um prédio não precisa ser demolido para que se construa um outro nele mesmo. As modificações mais profundas são sutis, às vezes, começa-se pela fachada, uma pintura, novas flores nas jardineiras da janela, outras, começam por dentro, na instalação elétrica, no hall entre os apartamentos. Nada brusco, pequenas mudanças diárias imperceptíveis para quem passa os olhos apressados nele; sem tapumes, nem andaimes expostos, sem uma dezena de trabalhadores e a sua desordem animada, só um ou dois funcionários mais discretos. Acontece sutil e permanentemente, por isso quase ninguém nota, mas é outro prédio, ainda que em um mesmo lugar. É difícil explicar para um visitante que os tempos são outros, mas, de fato, são e ele mal notou. O lugar é aquele de antes, mas mesmo sem um tijolo vir ao chão, a construção agora parece outra.

  Para prédio ou gente o entendimento da mudança parece sempre ser tarefa hercúlea; é comum dois antigos conhecidos, por segundos, minutos ou pelo resto da vida, não se reconhecerem mais. Ou pior, fingirem que continuam num mesmo lugar para não afastar o afeto acostumado. Por um gosto adquirido ou abandonado; por uma opinião não mais compartilhada; por uma vida outra desejada, remotos afetos parecem outros, gente que se fez nova e não nos demos conta. Certo é que pequenas revoluções se acumulam em todos os cantos, todos os dias, e só nos apercebemos delas quando precisamos voltar ao prédio antigo; aquele que não existe mais.

  As crianças pequenas vivenciam, tantas vezes, este terror: o de não reconhecerem a quem tanto conheciam. Depois de pouco tempo de afastamento, por um período de férias, feriado ou final de semana, o reencontro com o amigo mais querido pode ser dramático. Os novos amigos dele, as novas aquisições materiais ou subjetivas, as experiências compartilhadas com outros amigos e não mais só com ele, os planos esquecidos, as promessas ignoradas, os pactos desfeitos. O melhor amigo apresentando-lhe o que ele reconhece como a deslealdade mais profunda: a mudança. Mal sabe ele, que ele também é desleal ou, melhor, é também outro.

  Não é preciso morrer para que uma outra vida ganhe lugar, aliás, estar vivo é muito mais se transformar em tantos outros do que permanecer. A transformação é a vida não se acostumando demais, é a vida ofertando aos nossos olhos a oportunidade do novo, deslealdade é desejar encontrar o mesmo prédio, a cada visita. 

  A construção permanece no mesmo lugar, só as suas janelas, agora, é que  se abrem para outras paisagens. O prédio é outro, mas a porta estará sempre aberta às visitas, às novas-antigas visitas. E esta é a maravilha da reconstrução: não derrubar paredes, mas construir novas a todo instante. Conhecer o novo e, aos poucos, reconhecer algum traço do antigo. A lealdade numa descoberta requisita mais esforço, mas, por outro lado, também oferece uma recompensa mais portentosa: a alegria de conhecermos o novo no outro e o admitirmos em nós.



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