domingo, 21 de dezembro de 2014

A vida que toca num rádio de corrida

   A motorista breca rápido, ainda em tempo, a impressionante agilidade, os movimentos precisos na direção, que nos poupam do imprevisível terrível, tantas vezes não evitável; por milésimos de segundos, poderemos voltar para casa ilesas. O suspiro chega longo, a vida fresca retorna aos pulmões. Desconhecidas que compartilham de segundos de gratidão e da certeza de um acaso de sorte. As pernas trêmulas dificultam minha volta, provavelmente as mãos dela têm a mesma dificuldade em retornar a direção. Nenhuma de nós disse nada, não discutimos sobre a cor do semáforo, nem lançamos desaforos ou culpamos uma a outra, não trocamos ofensas, só um olhar aterrador, um alívio partilhado e nos despedimos para sempre.

  A volta não é sentida, chego em casa sem nem saber como, desejo banho e solidão. Ao tirar a camisa de corrida percebo uma pequena mancha de poeira - do carro - acho. Não sei se foram as luzes de natal na avenida decorada, o efeito pós-adrenalina, os últimos dias nervosos ou a marca da vida na camisa,  mas o choro retardado invade noite adentro."Partia-me ao meio se acertasse em cheio". A cabeça a todo o tempo rememora. "Estou inteira. Vê meus braços e pernas, estão bem, não é? Nada aqui pela metade". Medo com atraso, gratidão no tempo certo, pela vida demasiada frágil preservada, pela existência em iminente perda a cada corrida matinal, que sai vitoriosa em mais uma manhã.

  Depois dos soluços, sono pesado, então, sonho com a cena a qual eu não assisti, mas me contaram há alguns dias. Uma amiga quem viu e relatou ainda emocionada: enquanto tirava o carro da garagem assistiu a um pombo morto e outro insistente, não entendendo a finitude da vida do companheiro e por isso, permanecia ao lado dele, cutucando, tentando trazê-lo à vida. Ela no carro desolada assistindo à cena, e semanas depois, eu sonhando com os dois pombos. Em qual dos dois a vida acabada mais doeu, no que partiu abandonando os vivos ou no que ficou abandonado? Não sei.

  O pombo esperançoso, o pombo insistente, comprometido, leal, desobedecendo aos indícios do corpo gelado, imóvel, mudo do colega de voo e vida. A negativa para o inegável. Morreu teu companheiro, a vida construída em dupla ou, ao menos, testemunhada por alguém próximo, é toda tua agora. E o pombo obstinado em não ser só, movendo um corpo sem vida, chamando por alguém que não pode mais ouvi-lo.

  Acho que no desespero ainda há esperança sim, acho mesmo que o desespero é o nível maior da esperança. É quando não ouve-se a razão, não aceita-se os indícios, descarta-se as evidências e nos agarramos a uma possibilidade mínima de milagre, de erro de análise. E se o pombo só dormisse? E por isso sacudir o pombo, cutucar, tardar o luto. O desespero é uma negativa guardada, um "não" atrasado, o derradeiro desejo, que quase nunca se concretiza, mas que pinta uma vida de verde, ainda que por poucos minutos, até ela aparecer vermelho-sangue; negro-luto. O pombo determinado a não perder um companheiro.

  A mulher no carro e a corredora eventual se livram das vidas despedaçadas, do desespero que ronda as existências tão frágeis; mas não voltam ilesas para casa. No carro da motorista, um quase alguém despedaçado, na blusa da corredora a marca de um lance no jogo. Vidas profundamente modificadas, sem a necessidade de um luto público. Já para os dois pombos na garagem: a dura realidade, avançando sobre qualquer possibilidade de esperança.

  A mancha da blusa sairá com a lavagem simples na máquina, mas há marcas que resistem a todo tipo de empenho, água e sabão. A esperança apontou o caminho de casa para as mulheres, não evitou o choro, mas permitiu a reflexão sincera de cada passo e marcha descuidada. A vida é rara, diz alguém na música do rádio de corrida.




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