quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O trabalho de ser

  Faz calor; muito. O lugar está cheio e os ventiladores são bem poucos. Chegamos no final da tarde, comecinho de uma noite abafada, passamos pela recepção - sou eu quem pego os documentos dele, agora - respondemos às primeiras perguntas e seguimos em busca de um lugar de espera. Sentamos separados, de início, mas alguém percebe a nossa relação de parentesco e oferece uma troca de lugar. Somos três, sentados lado a lado, numa espera partilhada. Já fomos três em tantos outros lugares, em situações extremas e outras bem leves. Somos três que sorriem, que se entretêm com as próprias risadas, três que compartilham da mesma postura - queixo elevado, pernas cruzadas e coluna ereta -  os três de narizes fortes,  somos os três em vigília paciente, agora.

  Levanto pela sede, busco copo e depois água disponível; o outro levanta para buscar informações sobre o tempo estimado até o atendimento (fará isto mais duas vezes ao longo das cinco horas passadas ali); já o terceiro levanta pela solidão,  busca pela coragem no acolhimento daqueles que o deixaram só no banco do corredor. Ele dirá que se cansou de esperar sentado, mas é medo de abandono; todos teremos este mesmo medo em alguma situação na vida; disfarçado ou assumido é um medo universal.

  Saciada a sede, respondida às dúvidas, consolado pela volta dos companheiros; somos três sentados de novo, sem ansiedade, alteração de voz ou humor; voltamos ao riso, porque ele é a casa melhor que sempre tivemos. O tempo passa mais bonito assim, nem sempre temos os três uns aos outros, mas quando nos temos, retomamos nossas afinidades antigas.

  No final do corredor, no ambulatório dos atendimentos mais graves, um casal. Em frente à porta, um homem  na cama e sua mulher, sentinela dócil e castanha. Em um minuto de distração, entro no quarto, vivo a intimidade entre o convalescente e abnegada amante, vejo as mãos enrugadas dela passando pelos cabelos dele, os olhos dele, buscando a alma dela; a dor dele se arrefecendo pelo amor a ela. Nenhum médico responde ao socorro, os enfermeiros todos estão ocupados e a possibilidade toda de cura dele estão nas mãos brancas da mulher idosa. Vez ou outra, ele interrompe o barulho entediante dos ventiladores, com um grito de dor, um pedido aflito a Deus, uma desistência declarada: - Não aguento mais!

  E as mãos brancas dela permanecem delicadas, dedicadas em acalmá-lo, apartar dele a derrota, injetar nele esperança. Sabe lá, se ela mesma tem alguma. Se não houver coragem, há mãos incansáveis. Passo a acompanhar as mãos, para quem sabe entender o rito, aprender a coreografia marcada, exercer o mesmo trabalho noutro alguém que sofra um dia a minha frente. Eu quero ter as mesmas mãos que curam ou, ao menos, que tentam a todo custo levar saúde a um homem desesperado; seu homem, seu amante, seu menino perturbado,  ora rogando vida, ora suplicando morte rápida. Um corpulento homem de branco entra no quarto e atrapalha minha visão, depois fecha a porta e os gritos abafados do doente logo se calam.

  Alguém  na sala de espera elogia a natural paciência da acompanhante do enfermo, diz que no lugar dela não seria tão forte e calma. E ainda repete o clichê : "Deus dá a cruz que podemos carregar". Ignoro cruz e julgamento e penso no trabalho das mãos da mulher. 

  A mulher do quarto tem consciência da sua luta e do propósito da sua calmaria. Não me engano, há tanta luta para aparente paz conquistada e mais admiração eu tenho. Acho que já somos, um pouco, na vontade de ser; no desejo latente e na busca constante em merecer ser. A serenidade da companheira é a busca por ela e não só natureza. Só ser também requisita muito empenho. Ninguém é sem desejar muito ser. 

  Eu quero ter mãos de cura. 

  Nosso número é chamado. Entrelaço minhas mãos as dos dois outros  e começo o meu destino. Somos três e rimos; agora de mãos dadas. Há muita luta nestes três sorrisos, mas nenhum dos três se nega ao riso ou se entrega ao lamento. Os trabalhos também precisam ser leves, a naturalidade também se constrói.






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