sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Nós que não vemos os vidros

 O antigo prédio era escuro, gelado e sempre cinza, construído no platô mais baixo do terreno, era demasiado úmido. Usava blusa de mangas longas quase o ano inteiro. Rodeado por árvores, arbustos e grama, quando os olhos se cansavam do concreto, bastam alguns passos e do lado do cinza a natureza multicor. A explicação para a configuração dos prédios na Universidade, ouvi nos primeiros dias: os cursos de maior importância ficam mais perto do céu, os mais inexpressivos fincados ao solo. Eu era do chão e nunca me aborrecia com isso. 

  A mãe se irritava, desde sempre, quando eu dizia que jamais poderia ser médica. Não tenho pavor à sangue, ferimentos, cortes ou queimaduras, ao contrário, já fiz muitos curativos sem receio algum; não sinto fraqueza alguma com cheiro de éter, nem pavor com barulho de sirenes ou desespero em situações de urgência e nunca tive problemas em visitar doentes, falar de doenças ou conviver perto delas. Mas, o caso é que para ser médica, eu deveria ser completamente outra: ter lido outros livros, assistido a outros filmes, ter tido outros amigos, ter me comovido com outras coisas, chorado por outras e até, ter sido outra criança. Tenho uma amiga que, na infância, por causa de uma infecção ficou internada por quase 3 meses e depois desse período pensou muito em estudar medicina, quando crescesse. Eu não tive um histórico assim, nunca pensei em ser médica, eu sempre soube o que não seria.

  Portanto, a primeira vez que entrei no prédio sabia que a minha vida não era a do alto, mas era essa, a do chão, a do platô mais baixo, mais úmido, mais próximo do centro de tudo (biblioteca, entradas e saídas) e achei que mais do que escolha, era um caminho traçado há muito, muito afinado com as minhas referências. Não era um curso, um prédio, uma instituição, mas era eu. Por isso, não houve suspeitas, desconfianças ou a mínima insegurança, entrei sabendo que era o meu lugar; voo rasante direto, sem hesitação, na direção do que já era eu.

  Uma década depois, a configuração do lugar mudou, os cursos do prédio escuro e do platô mais baixo subiram alguns metros e o prédio é novo, claro e muito solar. Da arquitetura mais contemporânea, o utilitarismo e,  por isso, o aproveitamento da iluminação solar, com a cobertura dos corredores e do pátio central  toda em vidro transparente. Agora vê-se o céu, o sol e a chuva, as paredes são tão brancas, quanto as de um centro cirúrgico e só usam blusa de mangas longas, durante o inverno. Não sabia se não gostava pela nostalgia, porque custo muito a me acostumar com as novidades ou porque na claridade é mais fácil perceber as mudanças, vi que os rostos são completamente desconhecidos. Ainda sentei em um dos canteiros e passei alguns minutos, esquadrinhado cada novidade, olhando o teto livre, o céu azul bonito, um pássaro voando baixo e mais baixo e certo, sem medo, cada vez mais baixo e veloz, até se chocar contra o vidro e eu assistir a sua morte, sem saber que morreria. E depois outro e mais outro e os pássaros voando certeiros e exatos até se chocarem com os vidros do prédio novo e solar. Estupefata assisti a morte de quase uma dezena deles. Desconhecendo o vidro, os bichos alados seguiam seu voo, sem prever os obstáculos transparentes e definitivos.

  Dias depois, soube que adesivaram algumas figuras de pássaros nos vidros do prédio para apontarem alguma delimitação e, assim, interromper o massacre.  Agora, dizem, morrem só os muito distraídos. Não me interessa mais a altura do prédio, se novo ou antigo, cinza ou branco, soturno ou solar. Agora, nada disso me diz mais respeito. Só a imagem de cada pássaro morto em voo certo que não me sai mais da cabeça, suas asas rijas se desmantelando, depois das suas cabeças corajosas baterem contra o vidro e nem o barulho oco das suas derradeiras aterrissagens se desprendem mais dos meus ouvidos. Condenados a uma morte não por ignorância, pelo contrário, por certezas desmedidas.

  Por vezes, o que interessa mesmo é voar, sem plano, sem direção, sem esperar o tempo bom. Voo de instinto, voo sabido antes mesmo de nascer; voo de quem não sabe o que é, mas tem certeza daquilo que não pode ser. Só seguir para outro lugar qualquer, desde que não seja aquele em que se está e ao qual sabe não mais pertencer. Quem não conhece os vidros corre o risco de se chocar na própria certeza, mas vive um voo muito mais pleno.

  Pintaram pássaros nos vidros - algumas mentiras salvam. Mas nem todos os pássaros aceitarão a esmola da redenção de última hora e, por isso, continuarão seu voo certeiro, com ou sem vidros, quem tem o voo como destino não se entrega nem sob avisos.



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