domingo, 15 de março de 2015

A gente fica, mesmo quando vai embora

  Era tempo de nascer e, por isso,  todos nascíamos. Éramos muitos, menos do que nossos antepassados, mas ainda muitos. Crianças castanhas de cabelos encaracolados, morenas de cabelos lisissímos, outras mulatas, negras, sem distinção de sobrenome ou brasão, éramos família e da mais comum. O lugar de nascimento era um só, entre montanhas a gente nascia e aprendia a dividir espaço com gente, bicho e mato; ninguém era dono de nada. Aos domingos era igreja, os padres não eram artistas e dízimo era moeda recolhida na cestinha, a gente partilhava com Deus, não com a instituição, pensávamos. 

  Antes do almoço, íamos brincar no campo de futebol do lugar, quem gostava do esporte assistia - era um time inteiro de tios - quem não gostava, fazia barquinho de folha de palmeira e depositava no riacho atrás do campo. - Vou mandar o meu para o mar, ele vai na minha frente, depois, quando crescer vou eu! Se tivesse vendedor de balões, a gente descolava um, com um tio ou outro, desajuizado, que gastava mais dinheiro do que ganhava, as crianças adoram os tios sem juízo e com algum dinheiro. Nós comprávamos para logo dar-lhes o céu de liberdade, igual a passarinho. Meu balão sempre ia para Paris, da minha irmã para Brasília, da minha prima voava para o Rio. Os balões e os barcos eram a personificação dos nossos sonhos. Ir embora. Tudo que a gente queria, era outro lugar.

  Voltávamos do campo e comíamos o frango do quintal, ninguém era vegetariano naquela época. Eram panelas grandes e pratos esmaltados, eu escolhia o de rachadura no fundo esquerdo, começava meu repertório de manias.  As conversas na cozinha duravam manhã e tarde adentro, nessas horas, criança só escutava e não era ruim, conversas de adulto eram também engraçadas e as vozes faziam a gente dormir nos bancos mesmo, depois do almoço. O silêncio, às vezes, atrapalha o sono diurno. 

  As horas do domingo duravam um ano inteiro: a gente brincava, caía, fazia curativo, brigava com um primo, voltávamos às boas, cicatrizava o machucado, dormia, acordava, voltava a brincar, não fazia nada, comia, corria, encontrávamos um passarinho ferido, um cachorro perdido ou uma cascavel no quintal e sonhávamos em ir embora. Ver o mar, morar num prédio bem alto e dirigir. 

  Nos domingos crescíamos mais do que nos outros dias, nos domingos, casavam, arrumavam um trabalho e as crianças viravam adultos. Minha irmã foi embora, minha prima também, nem Brasília, nem Rio e eu ficava sem Paris. Os barcos e os balões se chegassem ao seu destino seria um consolo, mas a escola ensinava que eles não podiam chegar. Eu não acreditava na escola.  Minha dezena de balões e centena de barcos estavam em Paris.

  Larguei a igreja, os padres passaram a gravar CD e escrever livros e as moedas não eram mais suficientes ao dízimo, parei de ir ao campo, meus tios não jogavam mais futebol e perdiam o juízo com outras pessoas e coisas, não fiz mais barcos de folhas de palmeira, nem comprei balões. Os cabelos foram domados, as conversas silenciadas e os domingos passaram a correr. Não cabia mais deitada no banco da cozinha e o prato esmaltado foi substituído pela louça intacta. As cascavéis não frequentam mais o quintal, as galinhas estão no supermercado e eu só queria o domingo comprido e as montanhas sem fim. 

  O primeiro lugar do qual cismamos em partir será sempre o lugar com o qual vamos sonhar, quando crescer não parecer tão bom. 
  Debaixo do limoeiro da estação. Eu só queria mais um dia lá. Debaixo do limoeiro, seria como o colo da mãe. Eu pequena de novo  soltaria meus balões para buscarem os céus de Paris. A minha estatura, a distância de casa, a vida depois de lá, nada foi capaz de me separar do limoeiro da estação. Deito na cama do apartamento e sinto o cheiro do limão galego, ele impregnado em mim. Eu nunca fui embora. Era tempo de sonhar com o lugar de onde partimos e, por isso, todos sonhávamos.



Nenhum comentário: