sexta-feira, 20 de março de 2015

Da arte de ultrapassar degraus

 Ter a sorte de encontrar não o que se quer, mas o que é preciso e que não saberíamos da necessidade se nunca encontrássemos. 

  Subo as escadas, são três lances com poucos degraus cada um, mas no segundo já estou cansada, são degraus demasiado pequenos para pés acostumados com amplidão, o exercício não é automático, há necessidade de algum cálculo. Quando apresso e piso sem muito controle, o dedão bate no encaixe do degrau posterior com tanta força, que reclama - lateja o pé esquerdo - no próximo, o excesso de zelo, deixa meio pé para fora e quase desequilibro. Nas escadas antigas, utilidade maior é não ter pressa. No derradeiro lance de degraus, a lâmpada queimada dificulta qualquer exatidão, não se vê onde se pisa e acabo me saindo melhor às cegas mesmo. Vez ou outra, não são os olhos a indicar o melhor caminho.

  Saio do noturno do corredor, depois de apenas um toque na campainha e sou recebida pela claridade do último dia do verão, que se apropria manso e sublime de uma sala surpreendentemente ampla. Somos três a espera e uma recepcionista bastante ocupada em ajeitar a imagem da TV, um dos rostos quase não vejo, enterrado na tela de um smartphone, já os outros dois rostos femininos e maduros me recebem bem, desde a minha entrada na luz. Elas sorriem, balançam a cabeça e só não me convidam para participar da conversa, porque parecem ter começado há muito o assunto, talvez dez ou vinte anos. São antigas, uma para outra, percebo pela intimidade que demonstram ao completarem o pensamento uma da outra, de se interromperem, de censurarem as ideias discordantes e não se ofenderem por muito tempo, mas, principalmente, reconheço vastidão de tempo em comum, pelas risadas sincronizadas, largas, doadas e recebidas numa intensidade correspondente. Só a intimidade é capaz de prever a graça, de se firmar o humor antes do fim da piada, de nunca deixar um companheiro gargalhar solitário.

  Logo uma das amigas é solicitada pela recepcionista, que interrompe seu esforço com a TV e a acompanha até outra sala. O homem ao lado continua seu mergulho sem volta na tela pequena e a outra sorridente se aproxima para uma conversa com a única disponível da sala. Começa a abordagem dizendo que pareço familiar, me pergunta onde moro, trabalho, se estudo, os mercados que costumo frequentar e reconhece que talvez esteja enganada, dois minutos mais e se lembra que pareço com alguém do cinema. Me conta os filmes que viu com atriz, da qual não sabe o nome, nem o título de filme algum, mas se esforça muito para esclarecer a semelhança. 

  A fala atropelada, os assuntos emendados, os sorrisos contínuos só deixam mais evidentes a preocupação pela companhia, que agora está na outra sala. Não demora muito e a expressão leve na claridade da sala, ganha a sombra da aflição, duramente disfarçada, que ela resolve revelar antes do jornal do meio-dia. São amigas antigas - me conta o que já sei - a companheira de gargalhada está muito doente e, por isso, retornam ao lugar, depois de quinze anos, procurando uma terapia alternativa. 

  - Da outra vez era eu a adoentada e ela me trouxe. Só trocamos os papéis, mas o final vai ser o mesmo. 
  A esperança quase afasta a sombra recém-instalada no rosto tão suave. 

  Ela ainda me conta que da outra vez, ela chegava ali quase arrastada por esta amiga, que desistente, já entregue, só foi para agradar a mulher da outra sala. Conta que não eram tão próximas há duas décadas atrás, quando ficou doente, mas se tornaram inseparáveis, desde quando ela passou a visitá-la diariamente para pintar sobrancelhas falsas, no lugar daquelas que caíram durante o seu tratamento. Desajeitada ela não tinha coordenação motora para fazer sozinha dois traços harmônicos e sensibilizada pelas pálpebras, ora desnudas, ora bizarras, a vizinha se dispôs a pintá-las todos os dias. 

- Sabe o que é isso, minha filha, alguém olhar seus olhos todos os dias e fazer deles melhores, mais bonitos, sem pedir nada em troca? Emocionada, não pude responder.

  Falou-me que o prédio continua quase do mesmo jeito, que as pessoas mudam, mas a amizade delas é eterna, que a amiga é a mais forte, guerreira e boa pessoa que ela já conheceu no mundo e emocionada me faz a segunda pergunta sem possibilidade de resposta: como viver sem ela, depois de só ter sobrevivido a tudo graças a ela?

  A porta se abre e a amiga avança até o nosso sofá, a mulher do meu lado pareceu sorrir o tempo inteiro, se despedem de mim e seguem lado a lado, iluminadas pelo último sol do verão. Muito crente, desejo vida longa às duas mulheres que acabo de conhecer. São felizes as duas, acho.

  Sorte é ter alguém que pinte as suas sobrancelhas quando você precisa, sorte, também, é quando alguém te acha essencial quando tudo o que você pode oferecer é um desenho sobre os olhos. O amor e a confiança se entrelaçam nos pequenos gestos. Nem medicina tradicional, nem terapias alternativas, foi o lápis de olho que deu à vida outro sentido. Um dia aprendo a traçar linhas assim. Daqui a pouco é a hora da descida, que os meus pés saibam melhor que os meus olhos, o tamanho dos degraus e toda vez que ficar muito difícil, que eu encontre uma mão que me ampare. Amém.




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