sábado, 9 de maio de 2015

Das loucuras que se deve ter

  De todas as loucuras que se pode ter, talvez essa, de deixar uma mágoa correr rio afora, seja a maior. Abrir mão do ressentimento, deixá-lo à correnteza e voltar a amar como se não houvesse dor alguma. Pior, voltar a amar sabendo da existência de uma dor, convivendo com o que a memória não abandona, mas a alma releva, suaviza, quase apaga. Só um louco ama sem concessões; só um avariado se rasga inteiro de desilusão e volta ao afeto com as meias partes tentando ser inteiras, envolvidas por paixão renovada.

  Mentira. Loucura maior talvez seja a de prometer não voltar, nunca mais vir, jamais fazer de novo, abandonar e, ao nascer do sol do outro dia, se dar conta de que não há saída, a volta é necessária porque é por ela que nos levantamos, comemos, respiramos e somos. Loucura, loucura mesmo é acreditar no que ninguém mais acredita, hastear a  bandeira que ninguém mais conhece, só você e, solitário, mantê-la erguida dia após dia, por respeito, por insistência e  fé. Só um demente carrega a esperança, quando todos já desistiram.

  Não. Acho que loucura, loucura mesmo é sentar todos os dias no mesmo banco e esperar pelas pombas, acreditar que elas precisam dos nossos milhos e não arredar pé, mesmo se nenhuma pomba sobrevoar o banco, nenhum vestígio de pássaro sugerir que elas vão voltar. Os loucos têm essa paciência, que para quem olha, parece divina, mas que só eles sabem o quanto queimam em cada espera. Arder em chamas altas e permanecer sentado.

  Loucura maior de todas é seguir o caminho que os mapas não trazem, que os guias desaconselham, que os carros não são capazes de seguir. Abandonar as malas, a bússola, os conselhos, a sombra fresca e enfrentar o tempo seco, a neblina baixa, os vales de mata fechada a pé, em busca daquilo de que nem se lembra mais. Só os insanos caminham sem rumo, com tantas certezas, com um ar de dignidade e sabedoria. Só a loucura não tem medo do que não sabe, ela se abre ao aprendizado no próprio caminho, por isso o planejamento é desnecessário para um insensato.

  Melhor, loucura é essa coragem sem resposta, ninguém sabe se vai dar certo, se haverá final recompensador e, mesmo assim, não se fala de arrependimentos, deserção ou entrega ao inimigo, mas permanente busca. Aponta-se os caminhos que o instinto sugere, que o mundo inteiro contradiz, mas que em algum lugar, alguma força diz que é para lá. A insanidade é cheia de certezas que brilham em um horizonte que só o descompensado vislumbra.

   Não, mentira. Loucura é ainda sentir o cheiro do café da avó, só por falarem o seu nome; é escutar o latido sonoro e tão real do cachorro que morreu há vinte anos, só porque viu algum parecido com ele na rua; é despertar no domingo de manhã e querer se comungar, porque ouviu o sino da igreja que não existe mais, querer confessar os pecados da infância ao padre Francisco: o pedaço de bolo roubado, a mentira para a mãe, a assinatura falsificada no boletim. E os dois credos, cinco padre nossos e dez ave-marias para a absolvição. A loucura é a infância que nunca se despede: ingênua, entregue, crédula.

  Loucura, loucura mesmo é passar anos a escrever e enviar cartas na garrafa, esperando que alguém as encontre. Cuidar de cada palavra para um destinatário completamente desconhecido. É inventar estórias que ninguém lê e ter os personagens como filhos, por isso a incapacidade do abandono. Só um insensato se dedica ao que não existe no mundo visível. A loucura cria um mundo diverso daquele que os lúcidos veem; a loucura singulariza, identifica, dá significado único a alguém que não se submete a despersonalização. 

  A maior de todas as loucuras é saber-se frágil, reconhecer-se sensível, falível, mortal e, ainda assim, não temer. Enfrentar com coragem o fogo cruzado e repetir a exaustão que não se tem nada a perder, não por  desapego ao conquistado, mas por necessidade do que sabe que ainda poderá vir a ter e ser. Para o delirante não há limite para a busca.

  Não há loucura única, basta uma loucura qualquer, um disparate sozinho ou vários sucessivos  para fazer a vida seguir ardendo, em labaredas de fogo vermelho. A vida que não arde, não marca, não desperta, não aquece. A existência cheia de certezas não é para o louco, a vida que só tiver respostas não compensa ao desajuizado.

 No princípio era o fogo, que depois se fez verbo. E o homem, para sempre, precisaria de fogo e verbo para se iluminar e ser a luz de outros homens. Assim era o começo que um louco poderia sugerir, se pensasse nos começos. Mas a loucura não olha para trás com frequência, ela tem seus pés sempre a frente, é ela a desbravadora do mundo. Com todo respeito aos sensatos, mas são os loucos os verdadeiros donos dos mundos.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

"A maior de todas as loucuras..." só por esta definição seu texto é magno. Parabéns!

Amanda Machado disse...

Muito obrigada Paulo, pela gentileza do comentário!