sexta-feira, 15 de maio de 2015

Entre um instante e outro

  Nenhum engano. Nem telefone errado, nem endereço daquela carta que ninguém respondeu, nenhum julgamento precipitado ou o menor sinal de uma decepção aguda, nenhuma confusão com o nome de alguém pouco conhecido, nem direção errada, dia ou hora mal calculados, decisão completamente equivocada ou escolhas sem enganos; absolutamente nenhum erro. Sem arrependimentos, nem mudança de planos, nenhuma visita inesperada, nem o mínimo acidente de percurso, a vida traçada finamente executada como um médico treinado e seu bisturi; um engenheiro e seu compasso, o professor e sua ideologia. O sonhado num dia completamente realizado. A existência organizada nas prateleiras de um escritório de contabilidade.

  Não tem sido assim. 

  Desconheço quem em um único caminho acertou os lugares, os tempos, as pessoas e encontrou, um dia, exatamente aquilo que esperava na saída. Não conheço acerto sublime em aposta única. Não é questão de treino, de tentativa até aprender o jeito certo, mas aprendizado, de fato, a partir do vivido; de cada coisa vista, sentida ou desperdiçada. Não é tempo, nem treino, são as apostas sucessivas, mesmo depois de cada perda, que apontam as possibilidades. Não há caminho, jeito ou aprendizado único; a experiência só pode ser plural.

  A caminhada é tranquila, até a descida obrigatória do meio-fio descontinuado lembrar que não há trajetória sem interrupções. Ensaiamos o passo e na apresentação ele não aparece, treinamos obstinadamente o lance que o companheiro de time esquece de nos oportunizar - então, é isso: o jogo é outro. A música acontece noutras notas, as palavras delicadamente escolhidas se espalham no ar e outras nascem desajeitadamente. A vida é o antes, acontece nos minutos de concentração do camarim, na oração do vestiário, nas músicas que não fazem parte do repertório oficial ou o depois, quando o público já foi embora, os torcedores abandonaram as arquibancadas, o show aconteceu, a fala já se calou.

  Nenhum erro hoje. Mas  promessas que não puderam se cumprir, tempos que não se acertaram, gente que precisou ir embora, chegada sem pódio, beijo sem foto, poesia em guardanapo de papel no botequim. Nenhuma escolha errada, só novas perspectivas se mostrando sob a cortina esvoaçante da janela. Planos que se perderam noutros planos, sonhos que nos levaram até a metade do caminho, quando o meio-fio quebrado nos fez descer ao asfalto e recolher outros sonhos mais bonitos. No intervalo entre dois grandes acontecimentos foi que a vida aconteceu.

  Nenhum cansaço, por agora. Nem o da bailarina na caixinha de música, guardada há mais de quinze anos. A bailarina, de saia encardida de tempo, continua a rodar, a rodar, mesmo que ninguém mais olhe para as suas piruetas, ela não desiste do trabalho de ser ela, mesmo que nem saiba o que seja isto.

  O que cada coisa nos proporciona é mesmo o enquanto, os finais duram poucos segundos e parecem demasiado nostálgicos. De segunda à sexta a vida me ensina o que eu ainda posso ser. Não é errado ser outro, diferente daquele da partida, tampouco escolher caminhos e desistir deles, errado é apontar para uma vida que só acontece num final que nunca cabe em previsão. Entre um instante e outro a bailarina não para. Ela que nunca pensa se venceu ou não, tem a dança como presente e, também, único futuro sabido. Todo mundo desvia de algum meio-fio interrompido, só a bailarina que não.



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