quarta-feira, 6 de maio de 2015

Se você visse, sonharia

  Esmalte laranja nas unhas curtas e dedos muito cumpridos, reconheço a mão de quem eventualmente seguro a bolsa pelos esmaltes menos convencionais e, mais ainda, pela espessura fina de dedos que parecem de porcelana. Não sei seu nome, mas reconheceria sua mão em qualquer lugar e tempo; as mãos dela já encontraram a minha memória. 

  Às 6 da manhã ela é especialmente mal humorada, eu que só a vejo neste horário, sempre desconfiei que o cenho franzido, a pouca disposição para palavras e a ausência de um sinal de sorriso fossem mesmo pelas obrigações matinais. O incômodo do despertar, quando a cama é o melhor lugar que se tem; e nos últimos dias de frio dou a razão a menina da mochila verde musgo e dedos de fada. Não cumprimenta o motorista, o cobrador e nenhum outro passageiro, seguro sua bolsa todos os dias e entendo o aceno da cabeça como um possível agradecimento. Gosto dela mesmo na ausência de qualquer movimento de sociabilidade; empatia pelo silêncio dela, pela curva fechada na estrada dos seus sentimentos. É quando não estamos vendo que as pessoas sentem, mas esquecemos muito disto e, por isso, solicitamos os sinais, que nem sempre estão dispostos a vir.

  Hoje ela chegou atrasada, correu atrás do ônibus e não veio sozinha. Pela primeira vez escuto pressinto sua voz, não fala comigo e ainda não há vestígio de sorriso, mas a voz deve ser doce e sinto que confirmo minha suspeita: ela é gentil. O ônibus para, ela segura a porta e fica meio corpo para dentro e a outra metade, aguardado alguém mais lento do que ela, que chega sem pressa. Segundos depois, ela desce e, aos poucos, um chumaço de cabelo branco começa a subir as escadas, onde a adolescente há pouco se pendurava. Um senhor sorridente, chega calmo, abrindo caminho no corredor do ônibus e é seguido pelas mãos brancas de unhas pintadas de alaranjado, segurando firme o braço com manga de tricô. Ele se senta, agradece efusivo a ajuda dela, mas ela só acena para ele, como faz comigo todos os dias. Não há palavras dela, mas afeto desinteressado de quem enxerga a possibilidade de se responsabilizar por desconhecidos.

  As bondades não são visíveis sempre, na maioria das vezes elas vêm de insuspeitos generosos, escondidos atrás de uma cara pouco amigável. Não há declarações, nem simpatias demasiadas que permaneçam para além de um gesto prático com alguém que não pode dar nada em troca. As mãos finas chegam perto do meu banco, ofereço-me para segurar sua mochila, ela me entrega e sinto orgulho de uma adolescente que vejo quatro vezes na semana, às 6 da manhã, há quase um ano. Com a mochila verde musgo nas mãos, seguro forte uma esperança. Estes são dias de não desistir do humano, dia de acreditar que as pessoas podem ser melhores e oferecer mais do que esperamos delas. As palavras, os acenos, as marcas da social são menos importantes quando alguém vê para além de si. A vida é também um pouco como a garota silenciosa das unhas cor de laranja, surpreende e alimenta esperanças, quando a quarta-feira é o mais cinza dos dias.



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