sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Fogueira em final de agosto

- Coloca aqui. Acende nesse pedacinho primeiro e, então, só quando o fogo estiver forte nesse pedaço pequeno, bem forte mesmo, sem perigo de desistir de ser fogo, a gente passa pra esse toco maior. É assim sim. 

  O quê? Não. Nunca fiz uma sozinha, mas já vi muitas serem feitas, todas começam pequenas, o segredo do fogo é esse mesmo, ir tomando a matéria aos poucos, até não sabermos do início. O começo, depois, é indeterminado, a gente nunca sabe onde queimou primeiro. Isso é alastrar, né? A melhor palavra para o fogo é alastrar... verbo, né? Verbo que explica a vocação do fogo. Não. Não acho que aquecer é vocação primeira, pelo contrário, acho que é um jeito do fogo parecer inofensivo. É disfarce. É premeditação de algo que deseja nos tomar por completo. A gente se sente confortado, acolhido, depois relaxa e então, o fogo vai ganhando espaço, se tornando definitivo, impossível de volta e então queima tudo pela frente, aquilo que gostaríamos e depois, aquilo que não prevíamos, sabe? Alastrar; isso que o fogo faz. Vou fazer silêncio. Faça você também. Como um ritual.
 
  Acho. Acho sim, que acender uma chama é sempre um ritual. Agora, vê que bonito: vermelho no centro, um halo alaranjado, circulando cada chama e a linha fina, azul, luminosa. O fogo é lindo. Por isso a gente se perde nele. O fogo é maior que a gente. Por isso é ele quem domina.

 Façamos um silêncio. O fogo tem som. No início é uma voz calma, parece até água escorrendo, depois chega a ser assustador, parecem gritos, uivos; aí, nesse ponto, a gente sabe que o fogo ganhou sua  potência maior. Área perigosa. Acho que poderíamos esperar até o fogo ganhar altura e, só então, voltaríamos a falar. Não. Ainda não é o suficiente. Confia em mim. Isso que você acendeu ainda precisa de tempo até passar para o toco de madeira, que irá acender todo o resto. Numa sucessão de contaminações; uma madeira, acendendo outra. E assim, também, um fogo acaba, uma chama por vez. Cada morte num tempo próprio. Sim, demora. Espalhar é até rápido, depois que começa, mas apagar é quase sempre no tempo dele, uma faísca escondida, uma labareda ignorada, subestimada  pode recomeçar uma fogueira. 
 Incêndio? Sim. Uma fogueira é um incêndio em área limitada, é um incêndio artificial, controlado. 

  Agora, vai! Seja rápido, mas faça com cuidado. Respeite o vento. Entenda o vento. Claro. O vento para o fogo é essencial: se a chama ainda é pequena e o vento for forte e muito rápido, ela apagará, mas se o vento for contínuo e forte, sem ser muito rápido, isso dará força  à chama e ela será mais rápida em se espalhar.

  Tem medo, agora? A gente precisa fazer a tal fogueira, não? Você queria uma de verdade, né? Não queria lâmpadas, nem lampiões, nenhuma outra enganação festiva. É assim que funciona. Queria fogo e acho que conseguimos. Não voltaremos atrás. Veja! O fogo já segue para o terceiro pedaço de madeira. Agora teremos nosso incêndio calculado. 

  O quê? Sério? Quer desistir? Chamar alguém? Por quê? Acha que não sei de fogueiras? Eu sei sim. Se quiser ir embora fique à vontade. Eu ficarei aqui. Eu preciso ficar. Meus olhos já me pedem isso. Preciso ver as labaredas, a dança das chamas, as cores, a iluminação toda, o escândalo de uma chama alta e o seu fim, lá pela madrugada.

 De manhã. Só saio de manhã, quando tudo for cinza. Não tem remédio. Eu e o fogo em um laço irremediável. Eu sei que não posso, que o controle é ilusório, que se ventar um pouco mais, acabo perdendo suas margens, mas não há mais volta. Assumo as chamas. É ao inacessível que nos rendemos, nos esforçamos mesmo sabendo que, ao final, não será nosso, não é mesmo para ser objeto acomodado em nossas mãos. A utopia é isto, não é? É o fogo que nos faz seguir, mesmo sabendo que não será nosso nunca.  A vida é isso: o fogo das beiradas, o controle do início, o vislumbre de um grande acontecimento e, de repente, o descontrole, a surpresa, o inevitável. Para a  fogueira:  preparo, paciência, cuidado e consequências assumidas.

  Sim. Você tem todo o direito. E, eu ficarei muito bem sozinha. Não tenho medo não. Mas me deseje sorte. Sim, eu confio que poderei ser forte em qualquer imprevisto. Sim, se eu cair eu levanto e se queimar, se arder nesse fogo, ninguém nunca vai saber, só o fogo e eu. Sou silenciosa quando luto. Obrigada. Fico. Siga você também. E da fogueira pode deixar eu cuido. E se, por acaso, algo acontecer, eu assumo, digo que a fogueira quem começou fui eu, sozinha e ninguém mais.



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