sábado, 3 de outubro de 2015

Afogada

   A água sugando para baixo, invadindo cada espaço ao redor. Em definitivos segundos, molhando os cabelos, cobrindo os poros, ocupando orifícios, interrompendo a respiração; a água pausando a vida, deixando em suspense o que se tinha em superfície. No início, a aflição da proximidade com a perda,com  o desconhecido,  com a implacável impotência. Os braços batendo desordenados, a voz calada pela invasão das águas, mas que ainda luta para sair e, na batalha, a água ainda ganha mais e mais espaço. O medo do profundo, do escuro eterno, o entedimento da fragilidade, o choro se misturando a águas maiores; muito mais fortes.

  Mas, depois de tudo, cansada pela turbulência dos braços sem ritmo, das mãos perdidas de uma haste qualquer, do peito descompensado pela falta de esperança,  das pernas agitadas em desordem, de pés que se acostumaram aos solos e que constatam a nulidade dos passos em blocos fluidos, de repente, percebe-se que nada mais é capaz de resgatá-la da condição em que se está, tudo o que se tem é a entrega, a aceitação de um destino não imaginado. Finalmente, a paz na passividade. Por não saber nadar, a aceitação ao afogamento parece ser a única possibilidade.

  Não é necessário ter passado pela experiência para entender a imagem de um afogamento; talvez ter se afogado alguma vez dá uma melhor ideia do tempo em que cada pequena sequência acontece. Porque na água, o tempo é outro, a duração não é a mesma que assistimos da margem. De resto, conhecemos todos o que é ser tragado pelo inesperado, sem condições de resposta, de saída. Estar em meio a uma força muito superior a nossa, sem preparo, sem recursos, sem escolha, com bem poucas e, cada vez mais, distantes chances.

  Mais do que não saber nadar, no afogamento, a âncora do arrependimento é o peso maior, ter se submetido à vulnerabilidade de um lugar, de um propósito tolo , de um mau cálculo. E se tivesse sido mais prudente, se tivesse resguardado melhor o que se tinha, antes de ser tragada pelas malditas águas? E se guardasse melhor o regalo que agora coloca em risco?

  Por outro lado, talvez render-se seja sublime, por isso, o instante de paz no afogamento, não acho que todos morrem lutando, alguns, penso, partem em relaxamento total e profundo, gratos pela água que não fere, só ocupa, rouba os espaços ausentes, cobre de imensidão um corpo repleto de vazios. E então, o mergulho passa a ser correspondido: a água me leva e eu  sucumbo.

  E depois da paz na entrega, uma rajada de esperança, cortando o céu e invadido as profundezas: e se uma mão vir ao meu socorro? Se eu flutuasse de repente? Se não aceitasse ir com a água? Se eu a recusasse? Se não lhe oferecesse obediência? Se não quisesse seguir a sua placidez?
  Abandona a serenidade, ordena os braços, impulsiona até a superfície e grita, logo volta ser coberta pelas águas novamente, mas resiste e sobe mais uma vez e chama por um nome que talvez a salve, uma palavra que possa ensiná-la a não se perder nas águas. São mãos, unhas, pele, cabelos, os pelos todos do corpo, as muitas vozes, aquilo que se tem e o que se desconhece ter empenhados no exercício da salvação. Não se deixa afundar, procura um arbusto, um bote, uma chance e retoma o fôlego e a fé.  

  Não importam as águas que nos querem submersos, nem o tempo do afogamento ou a comoção que provoca, mas  o movimento do impulso; é  na decisão da própria redenção que aprendemos a nos desvencilhar da correnteza.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Uma pilha de documentos à mesa e eu lendo Amanda. Vamos lá, que também mereço uns dez minutos aqui -
Uma experiência narcísica. Afogar-se em êxtase. Sabe, fico pensando em Eco, aquela ninfa, que devia ser lindíssima, meiga, cujo amor não correspondido por Narciso, a levou a definhar a ponto de somente sua voz vagar pela humanidade. Tal desprezo por Eco custou a Narciso ser levado a se afogar - rever suas origens no útero materno, e daí pode renascer em paz, ou morrer de uma vida para se transformar em outra, que foi o caso (pode ter sido a resolução para a busca da paz) - uma linda flor estéril e tóxica.
No fundo, no fundo, Eco me inspira.

Amanda Machado disse...

Que bom que deixou os documentos à mesa, ao menos momentaneamente, e veio partilhar o mito de Narciso e Eco - um dos mais bonitos da mitologia grega (e que herança os gregos nos deixaram!). E sim, como cabe aqui, nem havia me atentado a isto. Obrigada Paulo!

Anônimo disse...

Apenas... perfeito <3

Amanda Machado disse...

:) Gracias Zi!!!!