terça-feira, 27 de outubro de 2015

Do outro lado da rua, a solidão que parece, mas não é a sua

- Trocamos cumprimentos. Ela disse.
- Da janela do meu apartamento eu o vejo preparando o café, naquelas maquininhas de expresso, sabe? Escolhendo a roupa, indo para o banho. Ele não usa terno, só calça social e a camisa com a manga dobrada duas vezes. E, depois, vejo-o procurar as chaves de casa e do carro, arrumar a bolsa para o trabalho e fechar a porta do apartamento. E, então, espero ele passar pela portaria, ir até a garagem e, finalmente, partir para o trabalho. Sei quando ele sai atrasado, quando não vai trabalhar de manhã, quando ainda não chegou de viagem. E quando ele viaja, sinto falta da rotina assistida. É, para mim, como uma separação; sofro por não saber dele. Acompanho-o logo que levanto, em jejum ainda e sem banho, porque não poderia perder parte alguma do seu dia, ao menos no apartamento que já conheço tão bem, daqui da minha janela. No início, via-o de relance, quando saía a sua sacada e eu estava na minha, quando ele saía para o trabalho e eu caminhava com o cachorro pelo bairro. Mas, depois, tornei-me, aos poucos, mais atenta, percebia a luz do seu apartamento acesa até tarde, sua toalha sumida do varal portátil, a quinzena de junho com as janelas fechadas, em que provavelmente tirou férias e viajou, as orquídeas que ele trazia quando voltava do trabalho e o gelo cuidadosamente colocado sob os pés das flores, no verão. E assim, sua existência misteriosa, desconhecida foi, gentilmente, povoando a minha; sua solidão seduziu a minha e nunca mais quis ser só, sem a dele do outro lado da rua. Não me sentia mais solitária; não tive mais dores articulares e a compulsão noturna por doces, de repente, me abandonou. Passei a ter mais disposição para a academia, que só vou depois que ele sai para o trabalho; a gostar mais de cozinhar, porque ele também cozinha; a me arriscar mais no corte de cabelo e roupas, porque ele é um homem muito elegante, um tipo contemporâneo; passei até a consumir vinhos com mais frequência, porque sempre vejo-o com uma taça nas mãos depois do trabalho. Assisti-lo, de repente, deixou de ser uma eventualidade para marcar definitivamente a nova vida que se mostrava para mim.

  Constrangida com os detalhes que ela me relatava do desconhecido, sutilmente, quase envergonhada, perguntei: - Mas você se apaixonou por ele, então?

  A pergunta não a intimidou, pelo contrário, deixo-a mais efusiva e brilhante durante a descrição passional. Ela, tão discreta, sempre tão pudica, tão inteligente e já experiente até, tinha decorado os horários dele, conhecia seus gostos mais prosaicos e manias muito íntimas, de não deixar o sapato virado nunca, nem a porta do guarda-roupas aberta antes de se deitar, o número de garrafas de vinho consumidas por semana, quantas vezes a faxineira ia no apartamento dele, as vezes que ele ficou doente, as que não foi ao trabalho, os minutos que ele se atrasava e a ansiedade que ela sentia quando ele chegava mais tarde em casa.  Disse que a proximidade que sentia era encantadora. Não falou de paixão.

  Ao vê-lo assim tão vulnerável, na experiência de um cotidiano bisbilhotado, ela passou a imaginar que talvez fosse partilha e não invasão. Achou-se muito próxima, muito identificada, como se talvez a sua observação tenha preparado-a para, quem sabe, tomar o vinho, cuidar das orquídeas e ajudá-lo quando ficasse de cama. Sabia bem que não era paixão, que ele provavelmente não sabia o nível de intimidade dele que ela havia desvendado e admirado tanto. Mas ele a cumprimentou. Ela disse: - Ele me cumprimentou.
E mais, ela acrescentava: - Ele também já me viu do apartamento dele. Eu sei. É óbvio que quando o vi me observando, peguei um livro, deitei no sofá, fingindo naturalidade. Ele não me viu, como o vejo, mas estou certa que também me espionou e talvez tenha se sentido feliz como eu, quando o acompanho.

  Depois, disse que sentia que precisava tomar a iniciativa de uma apresentação. - Já sei tudo sobre ele, agora ele é quem precisa me conhecer. Falou-me de uma carta escrita e deixada na portaria do prédio dele. Não achei boa a ideia, mas ela não me pedia opinião ou julgamento, só precisava de escuta.
Para ela, bastava um "sim", algum sinal de reciprocidade e a solidão, que ela identificava em ambos, acabaria. Se respondesse a carta, se acenasse para ela enquanto preparava o café, se parasse o carro, se buzinasse, se sorrisse, se passasse mais tempo na sacada de agora em diante, ela saberia que passavam a ser dois. Mas, não vai acontecer.

  Eu sei, porque o outro lado nunca a viu antes da carta, o outro lado, sequer sabia dela até a manhã de hoje ser surpreendido pelo porteiro, com uma correspondência sem selo.

  Ela não sabe que a solidão dele não se soma à sua automaticamente. Porque uma solidão aparente, não necessariamente será curada com aquilo que você deseja ofertar. Não. Não é assim. Não se preenche lacuna de espécie nenhuma quando ela deseja continuar com os seus espaços vazios ou à espera de uma completude muito específica.  Duas solidões distintas continuarão ímpares, assim como duas solidões similares, mas com perspectivas opostas também não se encontrão em ponto algum do universo.

  Ela deixou a carta com o porteiro do prédio do desconhecido, não pude evitar. Corri. Afastei-me dela, da sua tentativa frustrada de felicidade na metrópole cinzenta, do seu final infeliz e, principalmente, dos insucessos nossos de cada dia, das frustrações que cavamos, frequentemente, sem nos darmos conta. Ela é quem escreverá essa história, meu texto acaba aqui. A narrativa já não é mais minha, só as personagens saberão dela  agora. Porque dos destinos de todos nós, a escrita atrapalhada e sem finais felizes também precisa ser treinada.

  Sentada no banco de um ônibus, onde escrevo, um homem, segurando um livro, tenta ler o meu papel. Não, homem, minha solidão, não pode ser sua. Ele se levanta, me pede licença e eu busco a capa do seu livro, gosto do autor, mas não olharei para o homem que descerá no próximo ponto. Não sou de contar as garrafas de vinho alheias.


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