sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Moça com o brinco de flamingo

  Mergulhada nas minhas próprias ondulações, jogando pedra atrás de pedra, provocando e assistindo a minha agitação, depois de cada duro pensamento jogado na calmaria. Absorvida em planos urgentes de uma confissão que é adiada por interrupções inesperadas, falta de ouvintes ou ocasião apropriada: a frustração diária de não poder partilhar uma descoberta, um segredo, um desabafo, seja lá o que essas pedras são. Como a fuga irrealizada na infância, infinitamente interrompida. Nunca chega o dia dela e os planos, aos poucos, perdem o sentido. Não fui a andarilha que a criança sonhou; ela odiava a ideia de, um dia, ser cativa.

  Absorvida por cada perturbação nas águas; entregue às pequenas ondas, nem via cada pessoa que se postava ao meu lado no ônibus, não enxergava para além das minhas margens. Sem bancos vagos, conformada em fazer o trajeto em pé, ignorava o que não era meu, o que não fazia parte do meu lago sacudido. Mas, então, uma ave rosa me salvou do que não era paz, roubou as pedras da minha mão e me trouxe para ela: a moça com o brinco de flamingo. Falava alto, a dona do flamingo, e sorria, gargalhava muito e dizia palavrões tão docemente, que ninguém, penso, se ofenderia muito.

  A ave  rosa presa na orelha, era um assombro, um desafio, uma beleza que delicadamente me afastou de mim e me tomou para a alegria inesperada de um final de tarde, de uma quinta-feira. Um flamingo balançando sobre os ombros de uma moça, se enroscando nos cachos dela, brincando de se esconder do meu deslumbre. Não queria saber de que era feito o flamingo, quanto valia como mercadoria, se a moça  tinha-o comprado na cidade ou não, só queria mesmo vê-lo nela, ambos tão sintonizados, harmônicos, filhos únicos um do outro. O flamingo era o distintivo dela, imprimia a sua identidade infinitamente particular,  sustentava sua individualidade, enquanto ela exibia a elegância de um flamingo.  

  A moça do brinco de ave colorida, era tão absolutamente única, tão ela, tão reconhecível, que eu a invejei. Passei a pensar o lugar em que havia perdido o meu flamingo e agradeci por não ter me sentado ao seu lado. Porque se sentasse, possivelmente falaria do brinco e ela olharia com desdém para mulher de preto e branco ao seu lado. Colocaria uma das mãos no brinco e o protegeria do meu olhar comum. E eu argumentaria, defenderia a minha figura banal: -  Mas moça, eu era tão ousada, tão certa da minha individualidade, nem mais bonita ou jovem, mas mais brilhante, compreende a diferença? No espelho, eu reluzia e agora sou esse borrão cinza, sem forma nenhuma ou na mesma forma que as outras. Eu tenho um segredo e não encontro a quem contar. Eu tinha uma personalidade, que acho que desaparece um pouco a cada dia.  Mas moça, eu não desejo bolsas, nem sapatos caros, tampouco vestidos de estilistas famosos, queria um brinco que me fizesse tão plena e luminosa quanto você.

  Ao descer, coloquei as mãos nas minhas orelhas com ornamentos que eu nunca gostei, mas coloquei na falta de outros melhores, por pressa, preguiça ou desleixo voluntário e prometi jamais usar de novo brincos que não dissessem quem eu sou ou, ao menos, quem eu gostaria de ser. Como alguém  pode sair de casa, como se não buscasse alguma felicidade pelas ruas? Como alguém pode entrar num ônibus e se parecer com tantos outros? Como alguém pode não ser uma luz? A moça dos brincos de flamingo tão perturbadora quanto a moça das pérolas de Vermeer atravessou minha noite vazia e me fez desejar ser reluzente de novo, um dia. Antes de dormir eu quis chorar pelo flamingo que eu perdi e que tantas outras nunca terão, por não saberem dele. Adiei minhas súplicas, como as fugas e desisti, por hora, de um ouvinte disposto, quero o meu flamingo e nada mais; ele me basta e eu a ele.



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