segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O que não deu nos jornais

    Foi você lindo, tão filho, tão menino, tão meigo, levando a mãe à casa da tia, segurando a bolsa dela, abrindo as portas, ouvindo cada estória três vezes, mas fazendo cara de surpresa e fingindo ser a primeira  em cada uma delas. Foi você tão sobrinho pequenino,  sentado na sala, debaixo de uma samambaia, iluminado pela luz colorida, vinda de uma varanda de azulejos estampados por flores, entre fotos amareladas de um álbum que já viu tantas vezes e que mal se reconhece, mas gostando muito do que via, tomando um café fraco com todo o açúcar do mundo, cercado de risadas antigas. Paciente, esperando por tudo e por nada, sem buscar o celular ou um copo com outra bebida. E você tão cordial, de olhos muito brilhantes, levando seu pai ao barbeiro, naquele bairro onde você morou quando criança, a navalha do homem velho, desde sempre, ainda risca a nuca do seu pai. E vocês pelo caminho, falando de futebol, dos que ainda têm chance na tabela e de quem disputa a Libertadores ano que vem. Você tio querido, brincando de perder na corrida, errar o caminho e falar errado os nomes das ruas, para ser corrigido pelo adulto de cinco anos, que parece mais severo que a sua professora do ensino fundamental. Você numa dimensão tão simples e, ao mesmo tempo, tão extraordinária, devolvendo a felicidade comezinha aos que sempre o sustentaram em afeto e acolhimento.

  Foi você tão cheia de paz, circulando pelas ruas do Centro, sem pressa, sem medo, livre de tramas, desapegada dos traumas, de moletom cinza, cabelo num coque no alto da cabeça, alguns fios soltos, sem spray, nem grampos, personificando a liberdade da dona. Você, sem batom, sem academia, sem propósito de sedução barata, conquistando pelos sorrisos sinceros, gargalhadas com corpo inteiro, sem censura. Você, humilde, aprendendo com os mais experientes; você esperta, entendendo um pouco de tudo e compartilhando com a pessoa ao lado, da fila, do banco do ônibus, da carrocinha de churros. Você tão intrinsecamente  independente, escolhendo a coletividade como um lugar preferido, para aplacar ausências, as suas e, mais ainda, as deles. Você, bela sem saber, inteligente e sensível sem ser esnobe, você, uma poetisa da rua de cima, de aura lilás. Você, meio Madalena, meio Madonna.

  Você, cara amassada, depois de uma madrugada  inteira e meia manhã dormidas, bem humorado, faminto, invadido a geladeira, deixando a TV ligada para o nada, ouvindo a conversa do apartamento ao lado. Fazendo as torradas, esquentando o leite e cantando a música da propaganda que passa agora. Olhando para  a torre da igreja,  do basculante da cozinha e fazendo uma oração, aprendida na infância; meio decorada, meio improvisada; mas toda em fé. Você, sentando na pia da cozinha, olhando para o número que salvou no celular a noite passada, pensando se liga ou manda mensagem, se fala um "oi" ou é mais ousado. Lembrando da boca tão vermelha, tão falante, tão seu sonho de adolescente; do cabelo macio, com cheiro de xampu cítrico e do cigarro, ambos  em harmonia, complementares, você pensou.

  Você, tão sem dieta, nem treino, sem carro do ano, sem convites para o réveillon, sem reservas num restaurante para o final de semana, sem cartas marcadas, ausente de jogo. Você, socializando livros, casacos, guarda chuvas, músicas e ideias. Você, sem nenhuma torcida organizada, correndo em último lugar, talvez, azarão da rodada. Você, sem freios, combustível acabando, ar-condicionado com defeito, abrindo as janelas, se refrescando ao natural. Você, sedento de gente, de bicho, de conhecimento; rejeitando poses, carnes que sangram e informação fraudulenta. Você, arquiteto infantil, construindo miniaturas de prédios, praças, monumentos, organizando cidades em maquetes, com gente de plástico, que só você entenderá.

  Eu hoje abri os jornais e não li nada sobre você, não vi uma foto, nenhum artigo ou nota  a seu respeito. Não soube o que fez hoje, nem um pouco sobre a sua biografia, não mencionaram o passeio com a mãe, a visita à tia, sua ida ao barbeiro com o pai, nem o passeio com o sobrinho. Não vi nada sobre sua desordem no Centro, nem uma imagem sua sem maquiagem, de roupa velha. Ninguém falou da sua refeição matinal, nem sobre o jeito que acorda. Não disseram da sua coragem em não ostentar nada, não comercializar nada, nem da sua construção em papelão recortado. Não falaram de você, como fazem sempre, porque você é grande demais para um jornal ordinário. Mas amanhã, depois e pela vida toda, o que você faz e não publicam sempre irá me interessar muito mais.


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