sábado, 17 de outubro de 2015

De uma visão para nunca mais voltar

  Podemos passar anos repetindo um mesmo gesto, praticando uma mesma ação ou exercício, tomando aquele já conhecido caminho, nos alimentando de um mesmo prato, tomando sol às dez da manhã e dormindo às nove da noite, porque parecia nos dar algum prazer, segurança, algum tipo de conforto, ao qual nos acostumamos muito. E, às vezes, porque nem sempre acontece, num dia ou outro, as mesmas situações parecem levar a experiências outras, para  as quais nunca nos preparamos. E o que era familiar e prazeroso, parece nos abandonar abraçados ao nosso  desencanto, desapontamento ou desconforto lancinante. E na própria repetição, um dia, algum mecanismo se rompe, o ciclo se abre, as engrenagens, de repente, emperram e nos obrigam a um outro exercício, que não o automatizado. Na confusão dos parafusos soltos, a reflexão vem nos cobrar respostas. Dura, ela rompe com o aparentemente instalado para nos fazer renascer em uma outra direção, onde tudo é provisório e as respostas mudam conforme a direção dos ventos. Onde as ideias são os moinhos; os inimigos quixotescos.

- Por que é que eu sempre fiz isto? Como pude me habituar a esta situação?

  Talvez nem fosse tão agradável assim, tão desejada ou voluntária, mas bastou o argumento de alguém, um pedido  vindo de uma pessoa pela qual temos tanto afeto, que nos tornamos  fiéis escudeiros das suas vontades. E tantas vezes bradamos que o desejo é genuinamente nosso, quando, no fundo, sabemos bem que não é verdade.

- Vamos sim. Todos vão. Você acabará gostando também!
- Faça por mim, em nome disso que estamos criando.
- Vai ser bom, você vai ver!

  Não vai, não foi, mas continuamos, seguimos com mecanismo em ação, para que ele não pare justamente em nossas mãos. E, o mal-estar que se instalaria se eu não aceitasse? E se eu não levar adiante? Se resolver recusar, por quanta mágoa eu serei capaz de me responsabilizar?

  Mas, então, há um dia, que o irrefletido nos cobra coragem, requisita-nos uns olhos autorais e aquilo mesmo que não era lá escolha muito nossa, mas também não nos custava nada, passa a doer, a ferir muito uma parte  interior a qual ocultávamos para que alguém gostasse mais do que podíamos ser e não daquilo que já éramos.

  Era um calor insuportável, desses de não ter remédio possível. Onde a água da piscina cega, a água do mar é salgada demais e queima a pele exposta ao sol da tarde. Era um programa que eles faziam quase sempre, especialmente nos finais de semana ou férias do pai, agora, os dois eventos aconteciam simultâneos e eles seguiram para lá. Era uma espécie de sitio, onde o empreendimento ficava, tinha um lago artificial, um restaurante e  um parque infantil com tanque de areia, duas gangorras, três balanços e uma casinha com escorregador.

  Gostava de lá por causa do balanço, principalmente, porque estava sempre vazio e não precisava lutar por ele contra ninguém. Saía e voltava quantas vezes quisesse e o balanço, ao menos um, estaria sempre vazio. E gostava de lá, também, porque os irmãos a deixavam em paz, os gritos da mãe se perdiam no espaço muito amplo e o pai parecia mais calmo, bem humorado, às vezes dava dinheiro para ela escondido, para que comprasse um sorvete no meio da tarde. E na volta, eram homens felizes com os seus troféus e uma mulher descansada da rotina de casa. Os sorrisos deles eram valiosos para ela, e nem suspeitava o porquê.

  Então, quando chegaram, ela foi para o balanço vazio, sentou com a sua certeza de alegria coletiva, ao menos na volta, num domingo. De longe, olhava para os irmãos, perdidos entre fios de nylon e anzóis e, pela primeira vez, viu quando o irmão jogou a isca na água e puxou um peixe. Sabia o que todos ao redor do lago faziam lá, via os peixes mortos no isopor com gelo que o pai levava. Comia-os no restaurante e depois, durante a semana em casa, mas nunca tinha observado o processo. Mal tinham chegado e o irmão do meio assassinava um peixe. E depois do primeiro, não conseguiu mais evitar os olhares para cada elemento que perdia a vida no anzol. Era doloroso assistir a mortes tão apreciadas. O pai, a mãe e os irmãos disputando cardumes inteiros. Quem sabe se eram uma família também? E vendo-os assim no lago, com os olhos de caçadores, achou-os estranhos, feios. - Meu Deus, não quero ser castigada por isso, mas como são feios meus irmãos!

  Não balançou, ficou sentada, desgostosa da revelação: - um tanque abastecido de peixes feitos para morrer. Não era pelo balanço, nem pelas canções no carro, nem para aplacar o calor, não era para a felicidade, nem pela unidade da família, vinham pelos peixes! Mais: vinham para matar os peixes... Quando a chamaram para almoçar, ela fingiu não escutar, esperou que todos se afastassem das suas armas, juntou coragem e quis olhar, ter um momento sozinha com aquelas vidas interrompidas entre gargalhadas e gritos efusivos de "eu consegui". Abriu o isopor que o pai deixou perto do lago e viu dezenas de peixes metálicos, prateados, esverdeados, rosados alguns ainda muito pequenos. Filhote, será? Teve pena, se sentiu culpada e com muita raiva de nunca ter se atentado para o que acontecia ali. Porque se vendeu por um balanço. Porque  foi convencida por um sorvete, uma volta de carro e gentilezas familiares. Odiou a família.

  E na massa brilhante de corpos, viu uma cabeça escamada buscar algum ar. Podia salvar uma vida. Tentou resgatá-lo, mas o peixe escorregava das suas mãos. A massa gosmenta atrapalhava o trabalho e o tempo era urgente. Tentou pegar a caixa de isopor, mas estava pesada, deu um primeiro chute e ela se aproximou da margem do lago, deu mais dois chutes, a caixa virou e rolou  até a água. Alguns corpos ficaram pela margem, outros boiaram e, talvez, algum deles tenha voltado para morrer ou lutar pela vida mais uma vez.

  Ainda entretida pela caixa amarela revirada, boiando no lago, escutou seu nome num grito e uma correria que seguia atrás dela. Não fugiu, esperou que a alcançassem. A mãe foi a primeira.
- Por que você não pode ser alegre como seus irmãos? Por que não se diverte como as outras crianças?
- Porque não consegui, mãe. Eu não pude.
- Não. Você é estranha, egoísta e má. E se continuar desobediente não vai casar nunca. Quem vai querer ter uma família com alguém que não sabe se divertir?
E nos olhos parados da mãe, quase serenos, ela achou que ainda encontraria compreensão.
- Mãe, os peixes também são uma família. Tinha filhotes no isopor, mãe.

  Irritada a mãe não entenderia o que se passava com a menina agora. Em sua maternidade limitada, que só enxergava os três filhos, a mãe não foi receptiva. Logo o pai e os irmãos chegaram e ela sabia que ninguém podia entendê-la.

  Mais corpos metalizados boiavam  no tanque, agora. No silêncio da volta, no espaço vazio do isopor, nos rostos contrariados, sem sorrisos ela entendeu a ameaça da mãe. Ela tinha razão, não se casaria e a maternidade ilimitada nunca lhe daria filhos só dela. Escolheu para sempre a família de peixes.

  Era isso. A mãe tinha razão. E, bastou uma mirada diferente do balanço costumeiro e a vida nunca mais voltaria a ser a mesma. Não a dela. Jamais.

  

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