Nunca a tinha visto, não sei se é nova aqui ou se o seu trabalho de passar desapercebida a escondeu por algum tempo. Não é ela quem recebe ou serve os pedidos, mas é quem organiza a cena, que na invisibilidade, equilibra pratos, passa panos e ajeita xícaras. É ela, desconfio, que coloca no pires da xícara do expresso o sequilho mínimo que adoça o amargor do fim do café. Agora que a vi, que acompanhei seus movimentos tão delicados, demasiado exatos e surpreendentemente precisos, não consigo imaginar mais o lugar sem ela. Agora é tarde; eu a vi. Não há como voltar atrás e tentar apagá-la de cada pedaço do pequeno café. As flores em cima das mesas, deve ser ela quem corta os seus caules muito grandes, retira as pétalas amassadas e coloca uma a uma, num buquê muito modesto, nos vasinhos transparentes. As toalhas de papel do lavabo e o sabonete líquido cheiroso também deve ser ela quem os repõe.
Meus cafés esfriam, tomo-os pela metade, peço uma segunda água, bebo, agora sim, até a última gota e disfarço, enquanto assisto-a retirar duas xícaras, um copo e uma garrafa de vidro sem nenhum barulho. Contemplo a dança que ela insiste em esconder, percebo as nuances, as curvas entre as mesas, os dois passos para direita, os dois para a esquerda, um mais longo para frente, a subida na meia ponta e o corpo espremido contra a parede, para o garçom passar. Depois, assisto seu rasante ao abaixar no balcão de mármore antigo, com as minhas duas xícaras, o copo e a garrafa. A cena é toda dela, embora eu nunca tenha percebido-a antes.
O espaço, aos poucos, se esvazia, em menos de uma hora fechará, já fui avisada. Peço a conta, mas me incomoda a única xícara na mesa dos fundos, ao lado do balcão. Ela já estava lá quando cheguei e a moça, sempre tão atenta não a recolheu. Por duas vezes, levantou-a, passou o seu paninho azul, por debaixo dela, mas não a levou embora. Não pode ser por desatenção. A xícara que permanece, guarda o segredo da moça.
Uma xícara igual as outras, branca com o logotipo rebuscado do café, mas que não é recolhida, que é esquecida propositalmente, mantida feito a relíquia de um ente morto, intocável. A xícara que não se move, me chama, atormenta minha curiosidade e me faz ir até ela, antes de pagar pelos cafés que tomei pela metade. Finjo olhar um dos quadros da parede atrás da mesa da xícara restante, só para me aproximar. No fundo da xícara branca um resto de café, um dedo talvez, porque quase se vê o fundo, ameaço imitar a moça e recolher, levar até a cozinha, lavar e colocar a única xícara no seu lugar, mas me constranjo já pela indiscrição da minha observação levada a cabo.
Pago a conta. Cruzo a bolsa pelos ombros e, ao fundo, perto do balcão, na mesa da xícara que não se move, a elegância de uma moça: pernas cruzadas, antebraços sobre as pernas e sua invisibilidade, tomando um dedo de café frio. A bailarina do café guardou um último gole para ela. Talvez tenha feito o mesmo com a minha primeira água.
Aqui, quem sorve a última gota é ela; o poder dos derradeiros goles é todo da moça do café. Discreta e delicada é dela o trabalho das despedidas. Saio como ela passou toda a tarde, sem ser notada. Atravesso a galeria escura, quase vazia, enquanto dissolvo na boca o último sequilho doce da cafeteria e penso que as despedidas doeriam menos se fossem assim: delicadas, sorrateiras, livres de mágoa e quando ninguém mais assistisse. Os adeuses deveriam pertencer àqueles que sorvem os líquidos sem o barulho constrangedor dos lábios na borda das xícaras ou do ruído da louça nas mesas. As despedidas pedem silêncio e suavidade. Despedir-se deveria ser sempre um ritual solitário, suave, mas também decidido. Tomar todo o conteúdo da xícara, pacientemente lavá-la na pia mal iluminada e nunca mais olhar para trás. Assim, sem cacos, sem barulhos, com o drama todo tragado de uma só vez.
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