segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Ela que não tem para onde ir e que não aprendeu a latir

  Chegou na semana passada, segunda ou terça-feira, não sei bem ao certo, mas desde então, a vida deles tem sido outra. As conversas giram em torno dela, a presença dela é exaustivamente solicitada e, se atendida, muito comemorada. São três que competem pela atenção dela, requisitam-na, conversam com ela - cada um a seu modo - preenchem suas vidas com a existência dela. Suas rotinas parecem se organizar a partir dela, quase fazem uma fila para reivindicar um lugar na sua agenda imaginária .

   Eles são um casal jovem e tem um filho, de nove ou dez anos, os conheci assim: trio, desde o início. E tenho muita dificuldade em imaginá-los uns sem os outros. É uma trinca tão bem costurada, tão ajustada, que eu jurava não haver possibilidade de nenhum outro ser somar-se a eles; parecia não caber, não existir um único espaço para alguém ali, naquela armação. Mas, agora, ela chegou e percebo o quanto a sua ausência era sentida, mesmo que nem soubessem da sua existência. Esperavam-na; ansiosamente os três torceram muito para a sua chegada.

  É pequena ainda, um filhote, pernas compridas, finas e bem pretas, o pelo é um degradê bonito de marrom, mel, bege claro e quase não late a pequena. É bem silenciosa para um cão, quer dizer, para minha ideia do que uma cadela devia ser. Mas suspeito que o espaço que lhe sobra é muito limitado para a comunicação sonora. São muitos braços, apelos, afagos, que nem sei se ela gosta ou tem a possibilidade de pensar se gosta. Porque não lhe falta, talvez nunca saiba se é bom ou ruim.

  Escolheram para ela um nome estrangeiro, americano, eu acho, que na minha primeira mirada achei equivocado: - Não combina com ela!
  Um mesmo nome, que parecem três. Cada pronúncia é única: o menino fala de um jeito mais descolado, quase um estadunidense nativo, a mãe afrancesa o nome, o que para mim soa como o de uma gata de estimação de alguma emergente muito esnobe. Já a pronúncia do pai, para mim, é a melhor. É meio abrasileirada, com um sotaque bem mineiro, meio desajeitado numa língua que talvez não domine e por isso, soa mais autêntica, mais afetuosa.

  Gosto também do tratamento que o homem dá à cadela de estimação. Os outros dois são muito afetados, a mulher é muito cheia de recomendações à nova moradora: - Não pise aí; - Cuidado para não se molhar; - Se afaste do lixo; - Solte o papelão. O menino grita quase o tempo inteiro, sei que é bem o jeito dele falar com todos, mas a cadela é um filhote, imagino que os seus tímpanos caninos ainda estejam pouco preparados para tanto estardalhaço e para aquele desacerto de mãos que a buscam, seguram-na, apertam-na, sem muita noção da força empenhada . O pai não, o pai fala pouco com a cadela, ele é mais de gestos, aponta o jornal para ela fazer suas necessidades, quase não a segura no colo e olha bem dentro dos olhos dela, quando ensina algum novo comando. O pai é um entendedor dos bons, da vida que eu imagino ser a dos cães.

  A casa respira a nova moradora, a casa só fala dela, organizam-se em turnos para manterem-na sob olhos de responsabilidade e amor. Testam novas rações a cada dia, compram brinquedos, planejam casa ampla de cão, que o pai marceneiro fará - o projeto já sofreu, pelo menos, três modificações nos últimos dias. A casa da família é outra, tem mais assunto, parece mais iluminada, com atrativos que fazem seus moradores voltarem para ela mais cedo diariamente. A cadela é a luz de uma família; a cadela encontrou seu espaço no apertado laço que parecia ser impossível de se penetrar. Só a cadela conseguiu.

  Daqui da janela, acho bonita a relação que se constrói, mas tenho muita pena da cadela, que aprendeu tanto desde que chegou, mas que, ao mesmo tempo, se torna mais e mais dependente da família que a acolheu. Dão-lhe toda a comida que ela precisa, antes que ela tenha fome; dão-lhe água e ela quase não conhece a sede; enchem-na de afagos, afetos, braços escorregadios que comprimem as suas costelas. E, ela, que nem sabe latir ainda, esperando pelo pai, o único que não a sufoca.  A família tem sim, muito boas intenções, mas era de uma secura antes dela, uma aridez de falas e gestos, que a vinda de um filhote parece demasiado frágil, especialmente, para a mãe e o filho.

 É que às vezes, a vida muito acostumada nos cansa, a rotina dos dias, mesmo com a paz sonhada, nos faz querer aventura; outros olhos que nos enxerguem; alguém que se surpreenda com a nossa voz, que para os outros é antiga e monótona. Ás vezes, a gente quer ver nos olhos do outro o assombro do inesperado, o medo, a desconfiança, a incerteza daquilo que talvez sejamos capazes de fazer, e nesta crença nós também passamos ser um pouco outros. Ás vezes, a gente tem a necessidade de contar a mesma estória, mas que ela, a partir da escuta de um outro, possa soar inédita. E a cadela, que até outro dia não tinha para onde ir e que talvez tivesse fadada às ruas, caiu numa rede de entrelaçados afetos. Ela que tinha a liberdade como destino, agora é enredada por ausências que parecem não ter fim, carências que para uma cadela tão pequena fica difícil de serem supridas; faltas que ela sozinha não será capaz de carregar.

  Escuto um grunhido baixo, quase sufocado, da varanda ao lado...é a cadela, ensaiando um latido. Quando ela aprender, os três terão que se acostumar à sua voz. O amor então será em quatro vozes. Quem sabe como a trinca, antes tão organizada, receberá a nova voz?



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