sábado, 28 de novembro de 2015

Meu afeto revolucionário

  Há semanas a frase do muro me acompanha. Já andei bem colada a outras, porque as frases ou palavras soltas que eu encontro nas ruas  parecem, de alguma forma,  me pertencer.  Algumas delas eu preciso ler várias vezes, porque não se prendem de imediato; seduzem sutilmente, um pouco por dia. Passam sob os meus olhos sem nenhum arrebatamento, mas insistem, quebram as barreiras da minha indiferença, escorregam pelos meus olhos até, delicadamente, me conquistarem. Outras frases me laçam de imediato, são como balas de prata que queimam no peito antes de qualquer possibilidade de defesa; as frases sem dono invadem minha terra improdutiva, fixam suas raízes, semeiam suas histórias e me tomam como morada. Não há necessidade de um sentido final, acabado, único. Quanto mais polissemia, mais tempo dura a conquista, mais tempo permanecem no terreno, cavando, buscando o melhor lugar para deixarem suas sementes.

  Se parecem desconexas, sem sentido, tomo-as como enigmas, a espera de alguém que os desvende ou, simplesmente,  de quem queira se alimentar delas assim, cruas. As frases que eu recolho dos muros, eu não lavo, não penteio, nem as cubro com nenhuma manta bordada, porque eu as quero da maneira que elas se mostram para mim, sem fantasias, sem mentiras, sem idealizações. Impuras, indefinidas, sem um destino certo, elas entram pelas vidraças dos ônibus e assaltam a minha paz aparente.

  No muro branco, recém pintado, com cercas elétricas que brilham prateadas, a frase saltita. É imponente, é desafiadora: "O afeto é revolucionário". Não era uma declaração endereçada, um coração com nomes e promessa de eternidade; nem era incitação ao crime,  disputa de território entre gangues rivais, nem ódio, alimentado pelos preconceitos que como abutres, sobrevoam em círculos sobre os nossos direitos de amarmos o quê, como e a quem quisermos. Era afeto, era a frase inacabada que convocava a um outro tipo de luta. Era a frase, gritando durante semanas, o que eu nunca havia recolhido das ruas. -  O afeto, dona, o afeto revoluciona, não vê? Nenhuma arma vai te defender dele, nenhuma vai ser mais eficiente para o ataque. O afeto é o AR-15 dos nossos dias.

  Não são as filosofias que a moça tenta ler nos textos ou busca compreender nas aulas, nem as meditações que a todo custo tenta aprender, não é a homeopatia, tampouco a poesia e música que não consegue compartilhar, mas o afeto, a única possibilidade de salvá-la deste mundo é o afeto. Só ele subverterá a ordem estabelecida da desigualdade, fará justiça, substituirá o poder pela representação democrática, trará luz ao obscurantismo dos radicais. O afeto, essa arma que não mata,  estratégia que não se dilui, promessa que não se corrompe.  

  No muro branco da avenida pela qual  passo todos os dias, a frase encontra meu solo, ocupa, resiste e produz, tal qual um movimento organizado. E meu afeto revolucionário que pousa nos inacabados textos, na  ousadia dos sprays ou na precariedade dos pedaços de tijolo; busca na frase que pulsa em tinta ilícita, algo que explique a busca insana de uma leitora contumaz das ruas. Meu afeto revolucionário desconhece a razão ou autor da frase recolhida, mas decide adotá-la, trazê-la para perto de si e, quem sabe, soltá-la ao mundo, quando outros puderem desvendá-la. Só o afeto nos salvará de nós mesmos, nada pode ser mais revolucionário.



2 comentários:

Anônimo disse...

Achei lindo, forte, honesto, absolutamente simples e adequado ao que vivemos. Parabéns, você escreve muito bem!

Amanda Machado disse...

Obrigada! Que bom que gostou. Volte sempre que desejar. ;)