domingo, 15 de novembro de 2015

Os sonhos vão te buscar para a vida

   Borges veio esta manhã. Era final da madrugada, depois da noitada na rua, a volta pra casa, o banho gelado, eram cinco ou seis da manhã, foi só  fechar as cortinas, relaxar as pálpebras e Borges bateu na minha porta. Levantei da cama, destranquei as duas fechaduras, abri a porta e ele estava lá. Entrou como se morasse ou viesse aqui muitas vezes. Acostumado com  o espaço apertado entre a poltrona e a cadeira da sala de jantar, desviou dos móveis como um íntimo da casa. Afastou o revisteiro da entrada com a sua bengala, como um explorador, abrindo espaço numa floresta fechada.
- Trouxe os pães. Já passou o café?
- Não. Eu me deitava agora. Não quero café.
  Entrando pela minha sala, me empurrando para a cozinha, severo, ainda sentenciou: - Não vai mais dormir. É dia. Depois me perguntou se eu tinha mate.
- Não. Só café ou chá de saquinho.
- Então faça o seu café forte.

Parado na porta da cozinha me olhava sério, sem ao menos um meio sorriso, mas reconheci um aconchego familiar na sua voz e o afeto acostumado em cada comando.
- Aquele ali, por favor. Gosto mais daquele café.
Apontou para o pó do qual também gosto mais, mas que quase ninguém da casa usa.

 Enquanto eu colocava a água no fogo, Borges se abaixou, abriu a gaveta de louças do armário, escolheu uma transparente e colocou os pães nela. Ele não era velho como o imaginava, nem tão atarracado, era mais baixo do que eu, mas longilíneo, quando abaixou, vi no alto da sua cabeça, mais cabelos do que eu me lembrava. A água quase ferveu, desliguei o fogo e enquanto passava o café para nós. Lembrei que dormia. E eu não conhecia o homem que me olhava da porta da cozinha. Na verdade, ele não me conhecia.

- Você é o Borges, não? 
- O que acha?
- Bem, sabe...tenho uma foto. Tenho nove, na verdade. Tirei em frente a um pôster seu, quando fui a Buenos Aires. Uma por dia.
  Ele sorriu, pegou uma xícara, encheu-a com o meu café e me olhou sem susto, sem se incomodar com a minha descoberta, com o tamanho da minha cozinha ou com o calor da madrugada. Borges não se incomodou em ser meu sonho.

  Já tive outros desses sonhos, com gente que nunca me conheceu, gente com as quais convivi durante muito tempo e se foram, mas voltavam no sonho surpreendentes, dizendo ou fazendo coisas que jamais poderia esperar delas no período vivido. Numa véspera de prova, na oitava série, sonhei com Getúlio Vargas, por exemplo, e no sonho o  presidente me contava sua versão da história, dos seus dois governos, bastidores, informações que no meu livro não constavam, a maioria delas muito diferente do questionário que eu tinha decorado para a prova. Depois do sonho, o meu livro e as aulas pareciam fazer menos sentido do que o meu devaneio noturno. É claro que transcrevi as respostas decoradas, pela nota. Mas passei a ter com a disciplina e com vida mesmo, outra relação. O sonho com Getúlio me fez pensar na amplitude de perspectivas e versões que qualquer fato carrega. O sonho com o presidente morto não me ajudou com a prova, mas me atravessou, trouxe a dúvida permanente para a minha vida.

  Agora o Borges estava na minha cozinha e mesmo sabendo que era um sonho, eu insistia, parti um pão, passei manteiga e tomei lentamente o café. Queria que o nosso tempo se estendesse, o quanto mais fosse possível. Ele já havia se sentado e também comia o pão com a manteiga e tomava o café forte, sem açúcar. Esperei que ele falasse, tinha medo de dizer qualquer besteira e que, por castigo, eu fosse acordada. Por isso, eu fingia normalidade e olhava-o profundamente, não para os olhos, por pudor e por vontade de não despertar, mas para as mãos de Borges. Tive vontade chorar, porque não poderia contar a ninguém do encontro impossível. Tive vontade de abraçá-lo, como se ele fosse um parente e eu estivesse com muitas saudades e tive, mais do que das outras vezes, muita vontade de continuar com o sonho infinitamente. Eu passaria a vida na minha cozinha, fazendo todos os cafés que Borges pudesse beber. Porque não fazia sentido algum, mas era ali o único lugar que eu gostaria de estar, ao menos no sonho eu me sentia assim.

  Esperei por uma conversa que me esclarecesse a vida, meu papel ou qualquer coisa que me apontasse para algo que eu nunca tinha percebido antes, uma frase magistral do escritor, algo que me ensinasse, como o Getúlio fez sem nem saber, acho. Mas Borges só bebericava o café e nunca sorria. Não queria pedir caminho algum, tive medo que qualquer solicitação minha apressasse sua partida. Até a respiração eu economizava. No desespero, na vontade de permanência de uma situação somos capazes das maiores  tolices.

   Então o Borges se cansou da cadeira, se levantou e disse que eu ficasse com o pão que havia sobrado e que fechasse a casa muito bem.
- A cada dia está mais inseguro para sonhar. Não durma sem conferir portas e janelas antes.
  E andou em direção ao corredor do apartamento. Ele ia embora e quase nada tinha me deixado. bebeu o café e me deixou um pão que, seguramente, quando eu acordasse não estaria mais lá.

- Mas, Borges,  fique mais um pouco. Hoje é domingo eu posso dormir o dia inteiro, passamos o dia juntos. No mais, o que o senhor tem para fazer na imortalidade? Nada é urgente lá, ou é? Fique e conversarmos. Fique e me salve. Fique e eu não acordo, por favor, Borges, por favor.

   Eu não queria acordar, mas o visitante era resoluto, me olhou nos olhos, apontou a sua bengala para a porta do apartamento e disse:
- Lá fora. Os sonhos estão lá fora. Não trancados em segurança com você aqui dentro. Além disso faz muito calor  nesta cidade e talvez chova no final da tarde, não quero me molhar, me locomovo com dificuldades na chuva. E você vai dormir um pouco mais, vai acordar de novo e de novo.
- Mas o que faço com isso? Com o sonho em que você esteve e eu não posso levar. O que faço quando você não estiver aqui?


 Foi embora. Não vi mais o Borges. Acordei e a porta estava fechada e o gás desligado. Passei o café e me lembrei que não tinha pão em casa. Comi alguns biscoitos e senti saudades da visita sonhada. Vai chover daqui a pouco. Relembrei o que pude do sonho da manhã. 

  Acho que é isto, vou sonhar e vou viver também, com ou sem Borges. Na verdade, nunca se rompe com um, estando em outro. Os sonhos  não descansam da vida. Os sonhos devem  destrancar as portas, devem nos levar aos encontros outros, que precisam ser feitos. Eu estive esta manhã com Borges, amanhã certamente será outro a me confrontar e atravessar a minha vida. O tempo que cada experiência vai durar não é possível precisar, mas as marcas não despertam, não nos abandonam nunca.  O apartamento é apertado, a cozinha é muito pequena, quando não sonho; vou dormir mais um pouco e esperar, quem sabe, o próximo sonho que me busque. Amanhã é segunda e durmo menos, mas há sonhos que permanecem, mesmo quando estamos despertados.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Ah!! Os sonhos!! De que são feitos, afinal? O que nos dizem, para onde vamos quando sonhamos? A religiosidade pontua mistérios, a psicanálise caminha para o labirinto do subconsciente, mas e nós?
Somos real e virtual em tempo integral. É isso que somos - corpo e espírito, sonhos e realidade, vida e morte, sorte e azar. Enfim, a dicotomia taoista está em nós.
Seu texto tem uma verdade nele tão gostosa de ler, que seduz a leitura e dá vontade de sonhar também assim, um sonho fantástico.
Um abraço
Paulo

Amanda Machado disse...

Obrigada Paulo! Bons sonhos, então... :)