quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Quando não é tombo, mas queda

   Depois de uma primeira trilha, foram aprendendo que mais do que chegar ao topo, o que se conquistava
na subida era a preciosidade que só eles teriam acesso, não como um grupo que assiste a um mesmo pôr do sol, mas como um indivíduo cuja perspectiva da despedida de um dia é singular e intransferível . Então, escolhiam a montanha, descobriam os melhores meios de chegarem ao sopé dela, buscavam outras informações básicas, marcavam no calendário os dias possíveis para o propósito, economizavam na bagagem e seguiam com um risco projetado.

  Subiam, no começo, contemplando a paisagem deixada para trás, porque não tinham urgência, porque olhar para um passado, àquela altura não era fraqueza, vulnerabilidade ou um tempo desperdiçado. Mas era, sobretudo, seguir sempre em frente, sem os rastros de melancolia, para outros instantes, compreendendo a grande beleza que ficava por trás de seus ombros e ainda assim não desejar fixar acampamento ou mesmo desistir do cume, por uma paz provisória dos inícios. Porque o melhor caminho do ir é mesmo este: saber que o que ficou era deslumbrante, mas, ainda assim, desejar a busca.

  Depois, chegava aquele tempo do cansaço ir abreviando os olhares. As pernas começavam a ter menos certezas e por isso se locomoviam menos seguras e mais lentas, como se não soubessem se desejavam seguir ou permanecer, elas ganhavam vozes e aprendiam a lamentar por cada músculo, exigido ao extremo. A respiração, às vezes faltava, o coração acelerava  mais do que as batidas já conhecidas e os pés, adormecidos pela pressão, tinham muitas bolhas. Os passos começavam a vacilar, os tropeços aconteciam do nada - não havia a necessidade de obstáculo exterior algum, os passos encontravam no próprio corpo o empecilho para o equilíbrio.

   Exatamente a esta altura, a viagem se complicava e a dureza de avançar era, finalmente, reconhecida. Era então, preciso não olhar mais para trás, por medo de fracassar, de não querer abandonar o cômodo, o visto, o profundamente integrado e  ir em direção ao desconhecimento máximo do alto. O chão e os pés tornavam-se os lugares menos dolorosos aos olhos. Só quem olhou os próprios pés devastados, por muito tempo, sabe que a autocomiseração é quase inevitável. Então aí, é que homem está prestes a fracassar, porque tem pena de si, num ponto alto do caminho, o que se torna quase imperdoável em qualquer batalha.

   E nesta luta de tempo, memória, músculos, força e também delicadeza, chegam a cair. Não é um tombo; não é simples e rápido. Os tombos são passageiros, tomba aqui e logo vai se abanar da poeira sobre a roupa, ajeitar a bagagem nas costas novamente e seguir sem muitas feridas. Tudo dura um instante muito breve.

   Com o cair, não. Cair demora, cair se estende até a terra se entranhar nas roupas, atravessá-la e ir ao encontro da pele, do ferimento. Cair é longo, os companheiros de trilha até assistem, mas nada podem fazer; o viandante chega a prever a queda, mas não pode evitá-la. Afinal, o cair é também uma fração da trilha.

  Mas quem caiu sabe que, mais tarde, uma hora ou outra, em algum momento, terá a recompensa da chegada à pedra máxima.  As quedas precisam ser superadas, numa trilha. Dura até a resolução, o entendimento do sentido da luta ou os músculos se sentirem mais aliviados; cair, por vezes, é uma gentileza do destino com o viajante extenuado. A queda que mostra a paisagem, que resgata a memória e abastece de desejo ao explorador iniciado. A partir da queda, refazem itinerários e estratégias; repensam as rotas, reescrevem  os planos de chegada e rememoram as paisagens ultrapassadas. O cair é ao mesmo tempo físico, porque chegamos ao solo vermelho, duro e limitante e, também, interior, cair em si mesmo, nos próprios abismos ignorados da  alma percorrida .

  Ao final da trilha, do alto da montanha, a queda vencida não é mais lembrada, mas ainda assim, ela está lá: na poeira, nas feridas, no corpo maltratado, na rota refeita. As quedas duram muito e nos acompanham mesmo quando estamos de pé; as quedas  nunca acabam. E, mesmo depois de levantarmos continuamos, para sempre, caindo. Mas, enquanto caímos: - Olha e vê, daqui de cima tudo é tão bonito!




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