domingo, 13 de dezembro de 2015

A sua lança recolhe palavras

  É isso o que ele faz da vida: nada mais que recolher palavras. Não inventa, não cultiva, não dá o que elas não têm; só recolhe. Ele é um trabalhador braçal, que sai de casa às cinco da manhã e só volta às seis da tarde, se o trânsito não estiver muito ruim, se não, só sete ou oito horas da noite. Passa em cada porta, dia após dia, buscando as palavras dispensadas, que ninguém mais quer, revira os latões, explora cada canto, parede, curva, muro, para recolher, fazer ajustes, os pequenos reparos que aprendeu com o seu pai e, no tempo certo, elas voltam para as ruas; sem que nunca ninguém saiba que elas passaram um dia por ele.

  Uma atrás da outra, compulsivamente, ritualisticamente, no seu sacerdócio, ele coleta palavras. Não pergunta para o que servem, se são importantes ou de onde vêm. Não faz nenhum juízo de valor, não separa entre boas ou más; justas ou nocivas, claras ou enigmáticas. Ele recolhe cada uma delas, com a mesma dedicação de um perito em documentos históricos, ele as segura com a delicadeza que sabe que elas merecem, todas elas, sem exceção. Não as culpa por nenhuma relação terminada, por sociedade rompida, por falha na comunicação entre aqueles que pretendiam se acertar, ele é o entendedor mais sensível das imprecisões que elas carregam. Ele sabe que sozinhas elas não são capazes de decretar fins ou começar algo novo. Ele aponta sua lança para o que já existe e tenta a todo custo capturá-la, trazer para perto de si e, quando estiver pronta, libertá-la sem solicitação de recompensas.

  O artesão invisível passa obstinado sua agulha com a linha firme nas palavras mais duras, alinhava-as para não se decomporem em partes, se estão muito deterioradas e, depois, com a mesma precisão, costura as mais finas, com a mão leve para não desfazer a película suave de que são feitas. Ele é um operário que não bate ponto, mas nunca falta ao trabalho; não pede atestados, não conhece médicos, nem sabe se a saúde vai bem; acorda cedo e não sente dores e isso lhe parece o suficiente.

  Ele é um guerreiro sem pinturas e a sua lança, sempre em punho, não aponta para outra coisa que não as palavras. É forte, mas não agride; é intenso, mas não demasiado; é obstinado, mas nunca cego. É sensível as mais singelas e vulneráveis palavras, não as abandona, mesmo quando muito gastas. Ele sabe do valor de cada uma, não hierarquiza, nem busca uma serventia específica para elas; só recolhe e cuida.

  Ele arranca as palavras de raízes profundas em terrenos inférteis, quebra, com sua marreta, e resgata as muito incrustadas em solos pedregosos. Suor, lágrimas, por vezes, sangue, no trabalho árduo de libertar palavras para que elas voltem ao destino de servirem a quem não percebe o quão valiosas são.

  E depois, já tarde, quando volta para casa, o homem não usa uma só palavra em seu favor, defesa, argumentos para conquistar fama, dinheiro ou para seduzir. Ele respeita o ofício de recolher.
Por isso o silêncio. É escolha; é lembrança da missão cumprida; é aquilo que ainda não existe e a sua procura esperançosa por algo que designe o que ele é e sente. Nenhuma das palavras que a sua lança capturou foi, ainda, capaz de satisfazer a sua busca pessoal.

  Ele recolhe palavras; é isso o que ele faz. Respeite o seu silêncio. Não o acuse de não ser capaz de se expressar, não é o melhor dele. Mas a sua lança recolhe palavras e para isto sim, melhor caçador não há.



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