sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Do chinelo que não se esquiva

  Inevitável são as despedidas que fazemos todos os dias, sem nem nos apercebermos delas. Passam por nós, às vezes, muito sutilmente, atravessam as portas sem o mais discreto barulho nas maçanetas, passam astutas por entre as nossas  pernas, não tocam os móveis, nem se atrapalham nas curvas, nos abandonam sem bilhete de adeus. Outras, na fuga, estouram como foguetes, fazem um alarde sonoro muito rápido, até vemos que algo nos deixou, mas os olhos só alcançam o clarão, o contorno disforme de alguma coisa que não se vê. Todos os dias passa por nós algo que precisa mesmo partir. Porque não há mais lugar, porque não podem conviver com outras escolhas, porque não fazem mais sentido repousarem sobre os nossos pés, sem nos deixarem o caminho livre para outros movimentos.

  Todos os dias desabam sobre nós infinitas possibilidades que quase não enxergamos. Porque são escolhas  singelas de aparência, cuja profundidade talvez perceberemos  muito tempo depois, num insight, numa lembrança às três da tarde de um sábado, durante uma conversa banal sobre o clima. Não há como desviar do risco da perda e do desafio do novo, ambos estão entrelaçados conosco desde o nosso primeiro choro até o suspiro derradeiro.

  Há dor, eu sei. De não querer soltar o acostumado, de ter que deixar partir uma companhia muito íntima, de não suportar imaginar uma continuação sem as mesmas testemunhas. Há desconfiança também; sempre. De abrir espaço para o desconhecido, aquele que já nasce para surpreender, desacomodar, desequilibrar os pratos todos. Penso nas duas despedidas do dia, as duas passíveis de entendimento só agora antes do sono, mas possivelmente não são só elas. Talvez haja uma sorrateira sutil que não pude compreender e a fugidia que eu não tenha conseguido enxergar. Mas estarão ambas marcadas na minha história, ainda que eu não queira recordá-las.

  O homem no ponto do ônibus tinha um rosto transtornado, as mãos muito sujas e uma situação de completo desamparo. Atravessava a marquise de uma ponta a outra com um chinelo numa das mãos e o outro no pé, calçado, como se tivesse, o das mãos, arrebentado. No ponto abarrotado de gente muito ocupada, eu seguia seus passos atrapalhados e só na segunda  volta percebi que em cada ponta do circuito ele trocava os chinelos: calçava o que trazia na  mão e segurava o que antes, estava no pé. Não havia problema com o par de calçados dele. O homem repetiu a operação compulsivamente dezenas de vezes, enquanto estive a espera do meio que me tiraria dali. Ainda, ao entrar no ônibus, eu pude ver o topo da sua cabeça abaixada, pegando o chinelo que atravessaria o ponto na mão dele. Eu chorei.

  Não achei engraçada a sequência tão desajeitada e despropositada dele, não tive medo da sua condição mental, nem repugnância pela sujeira incrustada em cada uma das suas unhas, que vi bem de perto por um instante, nem dos dentes pobres. Mas me senti tão identificada com o desamparo dele, tão pertencente ao universo daqueles que não sabem lidar com as despedidas, tampouco com a novidade. Cada vez que ele trocava os chinelos eu sofria com ele. Queria ter dito algo, queria ter me comunicado com ele, mas não pude, porque, no fim, eu também continuo atrapalhada com o meu par de chinelos.       

  Mas homem, acho que algumas possibilidades precisam morrer para que outras sobrevivam sem serem sufocadas pelo ar viciado do antigo. A despedida é, tantas vezes, o melhor caminho. Soltar os dois chinelos no chão e assumir o risco das mãos vazias para sempre. O homem da rua não sabe disto, mas é preciso colocar os dois chinelos em jogo ou suas idas e vindas serão para sempre em vão. Só os riscos permanecem, o resto são chinelos que precisam ser gastos e, algum dia, substituídos.




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