quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Solitude na limpeza da vidraça

    Nunca tinha me atentado sobre os outros feriados, de como ele passa as festas. Talvez viaje, talvez receba amigos e família, mesmo que eu nunca os tenha visto nesta época. Somos vizinhos, mas não somos próximos. Daqui vejo seu apartamento, com suas sacolas de compra sobre a pia, seus tomates cereja, as maçãs, o pimentão amarelo, a alface americana, um abacaxi e, agora, esse pinheirinho com alguns galhos amassados - mas basta colocar o lado imperfeito para a parede e ninguém vai perceber os galhos quebrados, as folhas que faltam, a ausência de um verde fresco na ponta dos ramos. Mas é claro que ele pensou nisso quando trouxe a árvores do supermercado. Vejo também, eventualmente, algumas de suas escolhas: programação da TV, livros de fotografia, as camisas novas. Mas ainda assim, eu não o conheço, nem ele a mim. Somos desconhecidos completos, embora com uma estranha intimidade.
   Hoje, pela manhã, enquanto voltava da corrida, ele limpava a vidraça do apartamento do qual conheço pequenas partes, recortes de uma intimidade superficial, distante, mas, de algum modo, também delicada e especial. A limpeza foi demorada, vi o pano amarelo deslizar algumas dezenas de vezes pela superfície transparente que nos possibilita algum tipo de partilha. Vê-lo pela primeira vez, ou percebê-lo, solitário num período que nunca o vejo e assim tão concentrado, absorvido em um trabalho ordinário roubou minha atenção e devolveu-me sentimentos muito remotos. Assisti-lo entregue à limpeza dos vidros me lembrou de quando me ensinaram a cuidar da minha vidraça; do ritual que este tipo trabalho requisita.

    Assisti-o incorporar uma figura na qual me reconhecia, em movimentos com os quais me identificava.  Uma entrega precisa ao milésimo de segundo exato, a presença plena em cada movimento, a não-espera por um desenrolar possível, a não-expectativa pelo próximo passo. Só as mãos, o pano e a vidraça. No olhar profundo para o vidro, o foco limitado para o que precisa ser feito: tomado, retirado ou limpo. Passar cada pano como se  fosse o definitivo. E, depois, passar outro e mais outro.

  Primeiro o pano seco que retirará a sujeira mais visível, depois a esponja com a quantidade certa de detergente, se for muito, o vidro embaça, se pouco, não limpará tão bem. Depois um pano molhado para retirar a maior quantidade de espuma, outro e mais outro, até não ter mais vestígios de sabão ou de poeira. Finalmente, dois panos secos que devem deslizar com alguma força e, também, certa sutileza, o último deve rodar fácil pela vidraça. Enquanto ele limpa não há outra preocupação, não vê o céu cinza, não sabe se vai chover e, possivelmente, se soubesse também não interromperia os trabalhos, tampouco se dedicaria menos. Quando  a chuva cair será possível ver cada gota escorregar límpida, brilhante e absolutamente livre pela vidraça na qual ele abriu caminhos. Ele e a vidraça numa comunhão possível, no exercício de permanência em cada instante, afinal, isto é tudo o que temos: o suspiro pelo agora.

   Não sei com quem, em que lugar ou como passará as festividades, nem sei se há mesmo a solidão que a sua vidraça me permite acompanhar. Talvez viva só uma solitude muito delicada, resignada, sem dores pungentes. Talvez a vidraça seja a vida dele analisada, perscrutada em cada poeira, respeitando a vulnerabilidade do vidro, a decisão pela transitoriedade da pureza, a superação daquilo que incomoda, fere o olhar, atrapalha a chuva escorrer ou simplesmente precisa ser lavado, interrompido, retirado do caminho.

 O homem, seu ritual de limpeza e o pinheiro sobre a pia, lembram da necessidade de enfeitar pinheiros, mesmo quando uma das partes não está inteira - nunca estamos mesmo -  e da possibilidade de estarmos plenos em resoluções muito ordinárias. A limpeza do vidro e a solitude que a acompanha; ele não está sozinho, o meio pinheiro é a metade que lhe fazia falta.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Hummm... Monique Kessous ... hummmm!!!

Somos vizinhos, mas não somos próximos.
Somos casados, mas não somos um casal.
Somos amantes, mas não somos confidentes.
Somos apaixonados, mas não somos apaixonantes.
Somos um pouco de casa coisa, mas não somos tudo isto juntos!

É isto - Qual é a distância segura entre duas pessoas que conversam com o tempo e o espaço, mas não entre si pelas cordas vocais?
Ele prepara o ambiente para ela adentrar em sua vida. Ela experimenta o frisson da invasão caliente, pero no mucho!
Quando de um já está no outro? Muito mais do que muitos casais que se beijam e se tocam nos bares da vida!

Feliz 2016, Amanda - é bom vir aqui, é bom te ver e te ler! É um ritual. Leio tudo, mas evito comentar tudo - ficarei muito chato.

Feliz em tudo! Feliz seja tudo! Feliz!!! Feliz!!! mesmo que efêmera seja a experiência do memento Feliz. seja o Beatus Quantum um átimo, mas que seja intenso em todo o sempre que durar!

Amanda Machado disse...

Que bom que vem, Paulo! A companhia é sempre muito boa, nunca é chata. Obrigada pelas ótimas conversas e cafés, durante o ano. Um 2016 repleto de felicidades para você também! Gracias!!! ;)