Se as escolhas se camuflam, se travestem de naturalidade, não há muito a explicar sobre elas, não nos interrogam, quase nunca voltamos a pensar em cada uma delas. Porque parecem feitas ao acaso, como se já existissem prontas, antes dos pés.
Mas a escolha dele é de outro tipo, requisita a gravidade de uma linha rubra, cuja sutileza foi há muito perdida. Ele é tão jovem ainda, com um corpo bombardeado por mudanças drásticas muito recentes. Tento imaginar tudo o que ele tem passado nos últimos meses ou na vida antes da escolha. Nos anos de dúvida, desconforto e pés obrigados a seguirem linhas determinadas por outros. Ambas as trajetórias me parecem demasiado pesadas, especialmente para alguém de olhos tão doces e, ao menos agora, muito tristonhos; olhos de quem é frequentemente interpelado pela sua escolha.
Seus ombros parecem carregar um mundo de olhares de reprovação; quantas palavras ele não terá precisado recorrer só para dobrar uma esquina? Os olhos pretos e foscos trazem angústias que são muito mais explícitas nas redes sociais do que nos corredores que dividimos. É mesmo uma marca deste nosso tempo de distâncias finitas e proximidades impossíveis.
Os olhos pretos dele quase nunca se encontram com os meus, mesmo que eu os procure muito. Me incomodava ser preterida, me angustiava tentar me comunicar com ele e não ser recebida, mas afasto os brios e sigo colocando meus olhos na sua nuca morena, esperando que algum dia desses ele se vire, encontre em mim uma possibilidade de reflexo e perceba o quanto temos em comum. O dia em que ele entenda que a sua luta individual, de alguma maneira, pertence a outros tantos, a todos nós. Que ao trair o destino que parecia natural, que ao negar o traçado que determinavam para ele, abre-se a possibilidade de todos compreendermos o sentido de apontarmos o pé para alguma direção. Sem explicação detalhada, muita fenomenologia, só o entendimento puro de que não somos levados, não temos que ser, que o ritmo, a direção são construídas em cada passo, nem antes, nem por outros.
Quero ainda vê-lo vivendo em toda a sua completude, ser testemunha das suas mãos segurando cada escolha sua, sem tanto drama, sem as interferências opressoras dos que buscam ordenamento e limites para aquilo que não entendem; essa violência dos olhos alheios. Assisti-lo ser quem é sem suspeitas, sem medo, sem a solidão dos incompreendidos. Vê-lo colocando os pés no chão que escolher, mais, saber que ele aprendeu a voar e que respeitaram suas asas. Uma pessoa devia ter o direito de não se explicar, entender-se para si é sempre o bastante. Ainda espero vê-lo avenida afora, tomando o vento da liberdade no rosto, com um andar leve, orgulhoso de saber quem é, obedecendo a um outro chamado, não este que lhe impelem a ser cativo, a uma natureza externa, mas a esta outra que o acompanha dentro.
Se os seus olhos não encontrarem os meus, minha prece há de alcançá-lo e nos dias mais difíceis, você será consolado e acolhido por ela, mesmo que não saiba. E quando o vento soprar o seu rosto e a vontade de continuar for maior que o peso de toda luta é sinal de que eu e você somos livres e de que não existe escolha errada, só escolhas.
Eu ainda olho para a nuca dele e talvez ele olhe para uma outra também. Nos desencontros dos olhos, a compreensão também existe. Que as linhas sutis ou demarcadas não nos impeçam de frequentar os lugares que entendemos serem nossos, que ninguém nos indique um lado ou que pergunte sobre a nossa geografia.
Mas se perguntarem, diga a eles que o vento no rosto é a única direção que você obedece; não há outra.
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