segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Nem mil homens

 Não adianta dar o que não é preciso, os excessos do que não se quer só somam-se à ausência do necessário; no fim, vários nadas e a falta de um tudo deixarão o resultado, ainda, em débito.
  Por isso, nem mil palavras explicarão, se não vier aquela única, exata, aquela cujo som o ouvido poderá captar num golpe, sem necessidade de qualquer outra.

  Nem mil caminhos nos levarão, se aquele único, ignorado, não puder ser retomado a tempo, onde o desejo e o acaso se encontram num certo desvio dentro dele.
  Nem mil mortes nos salvarão da vida, se esta não for esgotada ao máximo, perscrutada até o último mistério em gozo ou dor.

  Nem mil fontes aplacarão nossa sede, se o gole que é preciso não chegar nunca a tocar os nossos lábios, se a imprescindível água não encontrar a língua e escorrer pela garganta em falta, então, a sede continuará a mesma.
  Nem mil incêndios afastarão o animal faminto do ninho alheio, se a única fagulha ameaçadora não irromper antes do encontro dele com o lar vulnerável entre os arbustos.
  Nem mil mulheres lhe darão a luz, se a sua vontade é a de não nascer; não se arriscar a ver o mundo com os olhos possíveis, estes que já estão dados.

  Nem mil letras bordadas escreverão seu nome, se o único borrão que te representa não for inscrito na folha sem pauta.
  Nem mil verões valerão a pena, se naquele único dia de nuvem você deixou que alguém destruísse, para sempre, o seu castelo construído na praia.
  As mil marcas de batom na gola da camiseta não valerão a mancha dos dedos na maçaneta da porta de quem regressou, depois que jurou ir embora e nunca mais voltar.

  Mil balas de prata não vão matar a sua empáfia diante do diferente, se uma única , mesmo que seja de borracha, não te fazer curvar em humildade, tolerância e respeito com o desconhecido.
  Mil olhos de vidro não serão capazes de ler virtude e beleza, se o único olho que precisamos não ultrapassar as barreiras da aparência, do preconceito e do que dizem.
  Nem mil orações irão te perdoar, se o mal passo não te ensinar os caminhos do arrependimento, da empatia e da renúncia.

  Mil velas não aliviarão a sua dor se a única luz da qual você precisa não se iluminar no momento certo, dentro de você.
   Mil grãos de areia passados na ampulheta não darão a largada para o começo, se um único grão agarrar na saída.
  Mil casas não serão seu conforto, se nenhuma delas puder ser o lar sempre disposto a acolhe-lo sujo, decrépito ou inútil .
 
  Nem mil amores hão de te amar e satisfazer completamente, se aquele único, perdido, não puder se realizar. Porque foi embora, porque teve medo, porque achou fora de hora.
  Ou  mil carteiros entregarão a mensagem, se a carta não tiver sido escrita, enviada e a entrega for aguardada pelo remetente ansioso por uma resposta ou por nada, que seja só o que precisa ser dito; já é o bastante.
  Mil livros não ensinam nada se a única frase da qual precisamos ler, nele, não estiver escrita.
  Mil flores não enfeitarão o dia de alguém que esperou uma só semente, por décadas, e nunca a recebeu das mãos que a prometeram.

  Mil dias planejados ou recordados não valem este único que no calendário acabamos de destacar; é ele o  que temos agora; é ele a tábua redentora ou a âncora que nos afogará.
  O que nem mil homens entendem,  um só poderá escutar e responder em tempo. E, então, sinalizar a rua, demarcar o trajeto, isolar a calçada e correr para você que já o espera de outras viagens.



2 comentários:

Anônimo disse...

"O que nem mil homens entendem, um só poderá escutar e responder em tempo".
Muitas coisas lindas aqui.
samarone Lima

Amanda Machado disse...

Muito obrigada, Samarone. Que bom que gostou! ;)