sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Basta uma gota

  Clara. Simples. Delicada. A gota que caía da torneira mal fechada, batia na colher, dentro da pia de alumínio, movia seu cabo levemente e o encostava no copo de vidro. Tudo numa ordem espontânea, mas tão bem delineada que parecia ter estudo, planejamento,  um mecanismo bem fundamentado que, no fim, produzia uma bonita canção. Demorei um pouco ainda a encontrar de onde vinha o som, metálico, pequeno, mas poderoso. Quando identifiquei, de início, quis fechar a torneira, para poupar a água, aprendizado antigo, mas depois, a música que fazia era tão bonita e a água desperdiçada tão pouca, na verdade, nem desperdiçada era. Porque fazia uma música e a utilidade era plena.

  Então puxei  um banco, sentei em frente a pia e fechei os olhos para que o som atravessasse mais fundo. A louça eu não lavaria, a TV continuaria desligada, as notificações no celular ignoradas e se chamassem no interfone, eu fingiria não ouvir. Era para mim a sinfonia na cozinha, eu mesma é que me dediquei; que o resto do mundo respeitasse o meu tempo. Sentei e não pensei quando acabaria, se a própria torneira, em algum momento secaria, se era uma água residual no cano em iminência de fim; nem se ela se prolongaria pela noite e, cansada da repetição, eu tivesse que em algum momento terminar com aquilo. Só sentei e ouvi. Tão difícil, às vezes, escolher só sentar e ouvir.

  A música que saía da torneira, era discreta, mas muito maior do que qualquer som ao redor, porque me dava exatamente o que eu precisava, era completude, conforto, um instante de plenitude sem nenhuma outra necessidade. No pouco é bem mais fácil  encontrar o que é preciso. Num amontoado de opções, escolhas a ser perderem de vista, a gente se confunde muito sobre o que é, de fato, imprescindível. Porque a gente olha para o lado, tenta copiar a questão do colega, sem entender sentido algum e, então, temos um resultado que é ao mesmo tempo certo para alguém e incompreensível para nós mesmos. A prova do colega nunca responde as nossas próprias questões. Eu ontem, sentada em frente a pia da cozinha, não busquei colega ao lado, nem resultado que concluísse uma conta, eu fechei os olhos e escutei, na pia, uma música que nunca mais irá tocar. Se isto não for uma riqueza, eu não entendo nada mesmo.

  Quando abri os olhos, vi uma  fileira de formigas no azulejo, observei seus caminhos, na trilha de farelo de pão, tão  solidárias, organizadas e silenciosas, para mim. Recolhendo comida e seguindo para uma misteriosa jornada que eu não tentei descobrir, possivelmente moram na minha cozinha e eu não quis perturbá-las. A música tocando na pia e o caminho melancólico e silencioso das formigas - parecia um cortejo. E quando morre alguma delas, como será que andam? Eu nunca vi uma formiga morrer, só as que eu matei. Será que as outras permanecem silenciosas?

  No microcosmo da minha cozinha a vida não é só mais simples, como também plena, porque a balburdia das ruas, confunde muito os sentidos. Buscamos aquilo que não precisamos, por imitação, culpa, por medo de ficarmos em falta, no desamparo de coisas que nem reconhecemos quando as temos. Na limitação de uma cozinha com uma torneira pingando e uma colônia de formigas inquilinas, penso em quantas músicas são abafadas, quantos seres são invisibilizados pela urgência de acharmos  um resultado e entregarmos logo a prova. E depois, o que vai ser? Outra prova?

  Às vezes, bastava uma gota sorrateira bater numa colher, o cabo da colher encontrar um copo de vidro e a vida ganharia, de repente, outro ritmo. Ou uma fileira de formigas ser observada e entendermos que o mundo é para além daquilo que ocupa nossos olhares acostumados aos espetáculos grandiosos. Isto é meu ideal de paraíso: uma pia tocando  música, formigas silenciosas, buscando seu caminho; não precisa de mais nada. Só o que me falta no mundo, às vezes, é alguém que diga que gosta de ouvir a música da pia também; mas, ontem, bastou a gota.





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